sexta-feira, 20 de julho de 2007

PSICOLOGIA DO INCONSCIENTE >[A psicanálise]<

É indispensável que o médico, o "especialista em doenças nervosas", aprofunde seus conhecimentos psicológicos, se quiser ajudar seus clientes, porque as perturbações nervosas (ou tudo que se designa por "nervosismo", histeria, etc.) são de origem psíquica e exigem, obviamente, um tratamento da alma. Água fria, luz, ar, eletricidade, etc, são de efeito passa­geiro e muitas vezes não produzem nenhum efeito. O padecimento do doente vem da alma, de suas funções mais com­plexas e profundas, que mal ousamos incluir no campo da medicina. Nesses casos, o médico precisa ser psicólogo, isto é, um conhecedor da alma humana.
Antigamente, ou seja, quase 50 anos atrás, a formação psicológica do médico ainda era das mais deficientes. Seu ma­nual de psicologia limitava-se exclusivamente à descrição e à sistematização clínica das doenças psíquicas, e a psicologia en­sinada nas faculdades era ou filosofia ou a chamada psicologia experimental, introduzida por Wilhelm Wundt.1 Da escola de Charcot, na Salpêtrière de Paris, vieram os primeiros estímu­los para uma psicoterapia das neuroses: Pierre Janet2 iniciou suas pesquisas sobre a psicologia dos estados neuróticos, que fizeram época; Bernheim3 retomou com sucesso, em Nancy, a proposta de Liébault4 de tratar as neuroses pela sugestão, pro­posta esta que já tinha caído no esquecimento. Sigmund Freud traduziu o livro de Bernheim, e isto foi para ele um estímulo decisivo. Naquela época, ainda não existia nenhuma psicologia das neuroses e psicoses. Cabe a Freud o mérito imorredouro de ter lançado as bases para uma psicologia das neuroses. Seu ensinamento resultou da experiência adquirida no tratamento prático das neuroses, isto é, da aplicação de um método, que ele chamou de psicanálise.
1. Grundzüge der physiologischen Psychologie, 5ª edição, 1902.
2. L’Automatisme psychologique, 1889; Névroses et idées fixes, 1898.
3. Hippotyte Bernheim, De Ia Suggestion et de ses Aplications à la Thérapeutique 1886 Edição alemã de S. Freud, Die Suggestion und ihre Heilwirkung, 1888.
4. A. A. Liébault. Du Sommeil et des états analogues consideres au point de vue de l’action du moral sur le physique, 1866.

Antes de entrar numa exposição mais detalhada da matéria propriamente dita, é preciso dizer algo sobre a sua posição em relação à ciência da época. Presenciamos um espetáculo que confirma mais uma vez a observação de Anatole France: "Les savants ne sont pas curieux", os cientistas não são curiosos. O primeiro trabalho 5 de maior envergadura realizado nesse campo mal chegou a provocar um eco distante, apesar de ter introduzido uma interpretação totalmente nova das neuroses. Alguns autores faziam pronunciamentos elogios a respeito, mas, ao virar a página, prosseguiam em suas descrições de casos de histeria, à maneira habitual. Agiam, portanto, mais ou menos como alguém que reconhecesse e aprovasse a idéia ou o fato de que a terra é redonda, mas mesmo assim con­tinuasse a representá-la tranqüilamente com a forma de um disco. As publicações seguintes de Freud passaram inteiramente despercebidas, apesar de conterem observações de suma im­portância para a área específica da psiquiatria. Quando Freud escreveu a primeira verdadeira psicologia dos sonhos 6, em 1900 (anteriormente, trevas absolutas imperavam nesse campo), ridicularizaram-no. E quando, por volta de 1905, começou a lançar as primeiras luzes sobre a psicologia da sexualidade 7, puseram-se a vituperar. Essa tempestade de protestos eruditos pode ter sido a principal responsável pela publicidade sem precedentes alcançada pela psicologia de Freud, notoriedade esta que superou de longe os limites do interesse científico.
5. Breuer e Freud, Studien über Hysterie, 1895
6. Die Traumdeutung, 1900.
7. Drei Abhandlungen zur Sexualtheorie, 1905.

Por isso, temos que apreciar mais de perto essa nova psicologia. Já no tempo de Charcot, sabia-se que o sintoma neu­rótico é "psicógeno", isto é, proveniente da alma. Sabia-se tam­bém, graças principalmente aos trabalhos da Escola de Nancy, que qualquer sintoma histérico pode ser provocado pela su­gestão. Conheciam-se, igualmente, através das pesquisas de Janet, as condições psicomecânicas dos surtos histéricos, como anestesias, paresias, paralisias e amnésias. Mas não se sabia como um sintoma histérico pode proceder da alma. As rela­ções psíquicas causals eram totalmente desconhecidas. Em 1880, o Dr. Breuer, velho clínico vienense, fez uma descoberta que, na realidade, se tornou o começou da nova psicologia. Tinha uma jovem cliente, muito inteligente, que sofria de histeria, isto é, para sermos mais exatos, acusava, entre outros, os se­guintes sintomas: uma paralisação espasmódica (hirta) afetara-lhe o braço direito; era acometida por repetidas "ausências" ou estados de sonolência; além disso, tinha perdido o domínio da linguagem, pois não sabia mais falar sua língua materna e não conseguia expressar-se senão em inglês (a chamada afasia sistemática). Na época, tentaram elaborar teorias anatômicas para explicar tais distúrbios, apesar de as partes do cérebro em que estão localizadas as funções do braço não se apresen­tarem mais afetadas do que as de uma pessoa normal. A sin­tomatologia da histeria é repleta de impossibilidades anatômi­cas. Uma senhora, que havia perdido completamente a audição devido a uma afecção histérica, punha-se a cantar freqüente­mente. Certa vez, quando a cliente entoou uma canção, o mé­dico sentou-se ao piano despercebidamente e a acompanhou em surdina. Na passagem de uma para outra estrofe, mudou repentinamente de tom. A paciente, sem se dar conta, prosse­guiu, cantando no novo tom. Logo, ela ouve e não ouve. As várias formas de cegueira sistemática apresentam fenômenos semelhantes. Um homem sofre de cegueira histérica total. No decorrer do tratamento, readquire a visão, mas, a princípio e durante muito tempo, apenas parcialmente: vê tudo, exceto as cabeças das pessoas; vê todas as pessoas que o cercam, sem cabeça. Logo, ele vê e não vê. Pela observação de uma vasta série de experiências desse tipo, ficou comprovado que só a parte consciente do doente não vê ou não ouve, mas, de resto, a função do órgão do sentido está em perfeita ordem. Esse estado de coisas entra em contradição frontal com o caráter de um distúrbio orgânico, que sempre afeta a função em si.
Após essa digressão, voltemos ao caso de Breuer. Não exis­tiam causas orgânicas que justificassem a perturbação. O caso devia ser considerado histérico, isto é, psicógeno. Breuer havia notado que o estado da cliente melhorava durante algumas horas, cada vez que a deixava falar — em estado de sonolên­cia provocada ou espontânea — de todas as reminiscências e fantasias que lhe ocorressem. Utilizou-se disso sistematicamen­te, no decorrer do tratamento. A cliente inventou um nome: chamava-o de "talking cure" (conversa terapêutica) ou então, ironicamente, de "chimney sweeping" (limpar a chaminé).
A cliente adoecera quando cuidava do pai, mortalmente en­fermo. Como é compreensível, suas fantasias giravam princi­palmente em torno dessa época repleta de emoções. As suas reminiscências daquele tempo ressurgiam, nos estados de sonolência, com tamanha precisão e com tantos detalhes, que se podia supor que um pensamento desperto jamais as teria reproduzido com a mesma forma e exatidão. (Essa intensifica­ção da memória, que não raro se produz nos estados de cons­ciência diminuída, é denominada hipermnésia). Coisas insólitas foram sendo reveladas. Um dos relatos dizia mais ou menos o seguinte: Certa noite, velava o doente, que ardia em febre, angustiadíssima com o seu estado e muito tensa, porque esta­vam à espera de um cirurgião de Viena que vinha para ope­rá-lo. A mãe afastara-se por algum tempo e Ana (a paciente), sentada à cabeceira, apoiava o braço direito sobre o espaldar da cadeira. Pôs-se a sonhar acordada e viu uma cobra preta vindo da parede e aproximando-se do doente, prestes a mor­dê-lo. (É muito provável que no campo, atrás da sua casa, realmente existissem algumas cobras que já haviam assustado a menina anteriormente e que agora forneciam o material para a alucinação). Queria repelir o animal, mas estava como que paralisada: o braço direito, que pendia sobre o espaldar da cadeira, estava "dormente", anestesiado e paresiado; quando olhou para ele, seus dedos transformaram-se em pequenas co­bras com caveiras nas pontas. Provavelmente, estava querendo afugentar a cobra com a mão direita paralisada. Por isso a anestesia e a paralisia ficaram associadas à alucinação com a cobra. Quando esta desapareceu, quis rezar, angustiada; mas não conseguiu: não podia falar língua alguma; até que, final­mente, se lembrou de um verso infantil em inglês e pôde con­tinuar a pensar e a rezar nessa língua.
Nesta cena ocorreram paralisia e distúrbio da fala. Ao re­latá-la, isso desapareceu. Consta que o caso foi completamente resolvido dessa maneira.
Devo contentar-me aqui com esse único exemplo. No livro já citado de Breuer e Freud encontramos uma quantidade de exemplos similares. É bem compreensível que cenas dessa na­tureza tenham um efeito muito grande e reproduzam uma pro­funda impressão. Por esta razão, tendemos a atribuir-lhes signi­ficado causal na gênese do sintoma. A teoria procedente da Inglaterra, energicamente defendida por Charcot, do "nervosos chock" (choque nervoso), que na época dominava a interpretação da histeria, prestava-se muito bem para explicar a des­coberta de Breuer. Daí resultou a chamada teoria do trauma, segundo a qual o sintoma histérico e, na medida em que os sintomas constituem a doença, a própria histeria vêm da psique abalada (trauma), persistindo inconscientemente durante vá­rios anos as impressões produzidas. Freud, que a princípio era colaborador de Breuer, pôde comprovar fartamente essa des­coberta. Ficou demonstrado que nenhuma das espécies de sin­tomas histéricos se produz por acaso, e que esses são sempre causados por fatos que abalam a psique. Assim sendo, a nova concepção abria um vasto campo de trabalho empírico. O espí­rito pesquisador de Freud, porém, não podia fixar-se por muito tempo nessa constatação superficial, pois já surgiam proble­mas mais profundos e bem mais difíceis. É óbvio que momen­tos de intensa angústia, como os vividos pela paciente de Breuer, podem deixar marcas indeléveis. Mas como é que ela viveu esses momentos, tão nitidamente marcados pelo patológico? Será que o cansaço dos cuidados dispensados ao doente pode­riam ter provocado esse efeito? Neste caso, coisas semelhantes deveriam ocorrer com muito maior freqüência, pois, infeliz­mente, são muitos os casos de atendimento a doentes, extre­mamente extenuantes, e a saúde nervosa da pessoa que presta esses cuidados nem sempre é das melhores, evidentemente. Para este problema temos na medicina uma excelente resposta. Di­zemos: o "X" do problema é a predisposição. As pessoas são "predispostas" a tais coisas. Mas Freud indagava: em que con­siste essa predisposição? O levantamento dessa questão levou, logicamente, à investigação da "pré-história" do trauma psíqui­co. Ora, é freqüente observar-se que cenas de forte conteúdo emocional, presenciadas por diversas pessoas, têm um efeito diferente sobre cada uma delas: coisas indiferentes ou mesmo agradáveis para algumas são consideradas repugnantes por ou­tras. Haja vista o caso de sapos, cobras, ratos, gatos, etc. Há mulheres que assistem tranqüilamente a operações com efusão de sangue, mas que se põem a tremer de medo e nojo ao simples contato de um gato. Sei do caso de uma jovem que ficou sofrendo de histeria aguda, por causa de um susto. Aca­bava de sair de uma festa. Era meia-noite; em companhia de vários amigos, ia a pé para casa. De repente, aproximou-se deles, por detrás, uma carruagem em disparada. Todos afas­taram-se para os lados, menos essa moça, que, tomada de pânico, pôs-se a correr no meio da rua, na frente dos cavalos.
O cocheiro estalava o chicote e vociferava. De nada adiantou. Ela desceu a rua inteira, correndo como uma desesperada. Chegando a uma ponte, já sem forças, achou que o único meio de escapar aos cavalos seria jogar-se ao rio. Por sorte, havia lá transeuntes que a detiveram. Esta mesma pessoa es­teve por acaso em S. Petersburgo, no fatídico dia 22 de janeiro de 1905, e presenciou uma operação do exército que varria a rua com rajadas de fogo. À sua direita e à sua esquerda as pessoas iam caindo por terra, mortas ou feridas. Mantendo grande calma e presença de espírito, assim que avistou um pórtico, esgueirou-se para a outra rua, escapando sã e salva. Esses momentos de horror não lhe causaram maiores proble­mas. Depois de ter presenciado tudo isso, encontrava-se per­feitamente bem e até com mais disposição do que antes.
Esse tipo de comportamento pode ser observado com bas­tante freqüência. Donde se conclui que a intensidade de um trauma, em si, tem pouca determinação patogênica, mas este deve ter para o paciente um significado particular. Em outras palavras, não é o choque em si que provoca invariavelmente a doença, mas esta ocorre quando ele encontra uma determinada disposição psíquica, que poderia ser o fato de o paciente atri­buir inconscientemente um significado específico ao choque. Seria esta a chave do segredo da predisposição? Vejamos: quais as circunstâncias peculiares da cena da carruagem? O medo tomou conta da jovem assim que ela ouviu aproximar-se o tropel dos cavalos. Numa fração de segundo teve a impressão de que fatalmente lhe ocorreria alguma desgraça terrível/ como a morte, ou algo semelhante. A essa altura dos acontecimentos, já tinha perdido por completo o poder de raciocinar.
Parece que o momento decisivo foi determinado pelos ca­valos. A reação irresponsável da moça a um acontecimento tão insignificante deve ser atribuída a uma predisposição; prova­velmente, os cavalos tinham para ela um significado todo es­pecial. Não seria infundada, por exemplo, a suspeita de que alguma experiência perigosa em seu passado estivesse ligada a cavalos. A confirmação dessa suspeita não tardou. Quando a paciente tinha sete anos de idade, durante um passeio de car­ruagem, os cavalos dispararam, aproximando-se em vertiginosa corrida de um barranco que descia abruptamente para um rio. O cocheiro saltou, gritando-lhe que fizesse o mesmo. O medo de morrer a impedia de obedecer, mas por fim saltou a tempo, um ,segundo antes dos cavalos e da carruagem caírem no abismo. Seria desnecessário provar por A + B que são profundas as impressões deixadas por acontecimentos desse tipo. No en­tanto, isso não explica por que mais tarde uma simples e inofensiva sugestão da situação provocaria uma reação tão des­cabida. Até aqui, sabemos apenas que o sintoma manifestado mais tarde teve um preâmbulo na infância. O que há de pato­lógico no caso, porém, não foi esclarecido. É preciso conhecer outros dados, para que se possa penetrar nesse mistério. À me­dida que as experiências foram-se multiplicando, foi sendo provado que na totalidade dos casos até então analisados exis­tia, ao lado dos fatos traumáticos da vida, uma perturbação de ordem específica, situada no plano erótico. "Amor", como se sabe, é um conceito vastíssimo, que pode alcançar céus e infernos, em que se conjugam o bem e o mal, a nobreza e a baixeza. Com essa descoberta, operou-se na interpretação de Freud uma reviravolta considerável. Freud, baseando-se inicial­mente na teoria do trauma de Breuer, procurou a causa das neuroses nos acontecimentos traumáticos da vida. Mas, depois dessa descoberta, deslocou o centro do problema para outro plano, bem diverso. Podemos pegar o caso citado como exem­plo. Já compreendemos que os cavalos desempenharam, eviden­temente, um papel peculiar na vida da paciente; mas o que não entendemos é sua reação posterior, absurda e exagerada. A anormalidade da história é que cavalos totalmente inofensi­vos a assustam. Como se descobriu que juntamente com os eventos traumáticos da vida desenvolve-se uma perturbação na área erótica, baseamo-nos nisso para investigar se algo de anor­mal aconteceu nesse sentido.
A jovem conhece um rapaz de quem pretende ficar noiva; ama-o e espera que seu casamento seja feliz. Fora isso, nada se descobre de imediato. A investigação, no entanto, não pode ser abandonada após o resultado negativo de uma questão superficial. Existem caminhos indiretos, quando o direto não conduz à meta. Voltemos, pois, àquele momento estranho em que a moça saiu correndo à frente dos cavalos. Indagamos a respeito dos amigos que a acompanhavam e da festa a que tinha ido. Fora um jantar de despedida de sua melhor amiga, Que ia ausentar-se para um tratamento prolongado numa estação de águas no exterior, por causa de seu estado, nervoso. Segundo ela, a amiga é casada, feliz e mãe de um filho. Pode-os duvidar da informação acerca da felicidade da amiga, porque se assim fosse, provavelmente não teria razões para estar nervosa, necessitando de tratamento. Mais adiante, fazendo al­gumas perguntas, fiquei sabendo que, assim que os amigos a alcançaram, minha cliente foi reconduzida à casa do anfitrião, por ter sido esta a maneira mais fácil de acomodá-la àquela hora da noite. Lá chegando, em seu estado de esgotamento, teve uma acolhida hospitaleira. Neste ponto da narrativa, a paciente silenciou, embaraçada e confusa, tentando mudar de assunto. Tratava-se talvez de uma reminiscência desagradável que de repente surgira. Após vencer a resistência obstinada da paciente, fiquei sabendo que naquela mesma noite ocorrera outro incidente insólito. O amável anfitrião lhe fizera uma ar­dente declaração de amor, o que, em vista de partida da dona da casa, criara uma situação um tanto difícil e embaraçosa. Ela disse que essa declaração a surpreendera como um relâm­pago num dia de sol. Mas essas coisas sempre costumam ter seus antecedentes. Nas semanas seguintes, o trabalho consistiu em desenterrar, fragmento por fragmento, uma longa história de amor, até recompô-la por inteiro. Tentarei fazer um resumo: A paciente, quando criança, sempre tivera atitudes de menino. Só gostava de brincadeiras turbulentas, zombava do seu pró­prio sexo, reprimia toda feminilidade e evitava qualquer ocupa­ção feminina. Depois da puberdade, quando poderia ter come­çado a se interessar pelo aspecto erótico, passou a fugir de toda companhia, odiando e desprezando tudo quanto mesmo de longe lhe lembrasse a condição biológica da pessoa humana. Vivia num mundo de fantasias, que nada tinha a ver com a realidade. Assim, foi-se furtando, até aos 24 anos de idade, a todas as pequenas aventuras, esperanças e expectativas que normalmente agitam interiormente a mulher nessa idade. Foi quando teve a oportunidade de se aproximar de dois homens, que deveriam romper a cerca de espinhos que crescera ao seu redor. "A" era o marido de sua melhor amiga e "B", um ami­go solteiro. Gostava de ambos. No entanto, logo lhe pareceu que gostava muito mais de B. Não tardou em estabelecer-se uma relação de intimidade entre ela e B, e já se falava num possível noivado. Devido às suas relações com B e com sua amiga, era freqüente o seu contato com A, cuja proximidade muitas vezes a deixava agitada e inexplicavelmente nervosa. Naquela época, a paciente e seus amigos participaram de um banquete. Em dado momento, estando ela a brincar distraída com seu anel, este subitamente lhe escapou da mão, indo rolar para baixo da mesa. Os dois homens puseram-se a procurá-lo. Foi B quem o encontrou. Colocou-lhe o anel no dedo com um sorriso expressivo e perguntou: "Sabe o que isso quer dizer?" Ela teve imediatamente uma reação estranha, irresistível: arrancou o anel do dedo e jogou-o longe, pela janela aberta. Seguiu-se, naturalmente, um momento de embaraço e logo de­is ela se retirou, deixando os amigos, com um mau humor insuportável. Pouco tempo depois, foi passar as férias de verão numa estância, onde, "por coincidência", o casal A também veraneava. A mulher de A começou a ficar visivelmente ner­vosa e, como não se sentisse bem, muitas vezes não saía de casa. Logo, a paciente tinha oportunidade de passear sozinha com A. Uma vez, foram dar uma volta de barco. Ela estava contente e animada. De repente, perdeu o equilíbrio e caiu na água. Como não soubesse nadar, A só conseguiu salvá-la com muita dificuldade, puxando-a já meio desfalecida para dentro do barco. Foi então que ele a beijou. Esse interlúdio romântico ligou-os mais fortemente um ao outro. No entanto, a paciente nunca permitiu que a profundidade dessa paixão lhe viesse à consciência, provavelmente por ter-se habituado desde cedo a negligenciar impressões dessa espécie, ou melhor, a esquivar-se delas. Para justificar-se perante si mesma, fez tudo para apres­sar seu noivado com B, convencendo-se de que o amava. Obvia­mente, esse jogo surpreendente foi logo captado pela aguçada percepção do ciúme feminino. Intuitivamente, sua amiga per­cebera o segredo e torturava-se com isso, o que aumentou seu nervosismo. Donde a necessidade de um tratamento e sua via­gem ao exterior. Na festa de despedida, o espírito maligno aproximou-se da nossa doente e sussurrou-lhe ao ouvido: Hoje à noite ele estará sozinho; alguma coisa deve acontecer contigo para que venhas à sua casa. E foi o que aconteceu: seu estra­nho comportamento a levou para a casa de A. Assim, conse­guiu seu intento.
Esclarecido isso, não haverá quem não acredite que só um requinte diabólico poderia imaginar e executar um encadeamento de circunstâncias igual a esse. Do requinte, ninguém du­vida; mas o julgamento moral é altamente suspeito. Insisto em afirmar, energicamente, que os motivos que levaram a essa dramatização da paciente não eram, de forma alguma, cons­cientes. Parecia que tudo lhe acontecera por acaso, sem que tivesse consciência de qualquer um dos motivos. Mas todos os antecedentes deixam bem claro que tudo estava inconscientemente programado para esse fim. Enquanto isso, a consciência esforçava-se para levar a bom termo o seu noivado com B. A compulsão inconsciente de seguir pelo outro caminho foi, entretanto, mais forte.
Aqui voltamos às nossas considerações iniciais, isto é, à questão da origem do patológico (ou seja, o insólito, o exage­rado) da reação ao trauma. Baseado em outras experiências, suspeitei que nesse caso particular também havia, além do trauma, uma perturbação de ordem erótica. Essa suspeita foi inteiramente confirmada e leva à conclusão de que o trauma, motivo aparente da doença, nada mais é do que a oportuni­dade que algo que está fora do domínio da consciência — isto é, um importante conflito erótico — tem de se manifestar. Assim sendo, o trauma perde a exclusividade, sendo substituído por uma interpretação muito mais abrangente e profunda, que envolve um conflito erótico como agente patogênico.
Muitas vezes perguntam: por que a causa da neurose tem que ser justamente um conflito erótico e não outro conflito qualquer? A isso pode-se responder que ninguém afirma que assim seja, mas tem sido provado que é o que acontece mais freqüentemente. Apesar de todas as asserções indignadas em contrário, a verdade é que o amor 8, com todos os seus pro­blemas e conflitos, tem um significado fundamental na vida humana. Pesquisas sérias têm provado, constantemente, que a sua importância é muito maior do que o indivíduo suspeita.
Renunciou-se, portanto, à teoria do trauma, por estar su­perada. O fato de se reconhecer que não é o trauma, mas um conflito erótico oculto, que está na raiz da neurose, faz com que o trauma perca o seu significado causal.9

8. No sentido lato que lhe é atribuído naturalmente e que não compreende apenas a sexualidade. Também não queremos dizer que o erotismo e suas perturbações sejam a única fonte das neuroses. As perturbações do amor podem ser de natureza secun­dária é provocadas por causas mais profundas. Existem ainda outras possibilidades de nos tornarmos neuróticos.
9. As neuroses típicas de choque são uma exceção, como o choque de granadas, "railway spine", etc.

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