sexta-feira, 20 de julho de 2007


PSICOLOGIA DO INCONSCIENTE >[A psicanálise]<

É indispensável que o médico, o "especialista em doenças nervosas", aprofunde seus conhecimentos psicológicos, se quiser ajudar seus clientes, porque as perturbações nervosas (ou tudo que se designa por "nervosismo", histeria, etc.) são de origem psíquica e exigem, obviamente, um tratamento da alma. Água fria, luz, ar, eletricidade, etc, são de efeito passa­geiro e muitas vezes não produzem nenhum efeito. O padecimento do doente vem da alma, de suas funções mais com­plexas e profundas, que mal ousamos incluir no campo da medicina. Nesses casos, o médico precisa ser psicólogo, isto é, um conhecedor da alma humana.
Antigamente, ou seja, quase 50 anos atrás, a formação psicológica do médico ainda era das mais deficientes. Seu ma­nual de psicologia limitava-se exclusivamente à descrição e à sistematização clínica das doenças psíquicas, e a psicologia en­sinada nas faculdades era ou filosofia ou a chamada psicologia experimental, introduzida por Wilhelm Wundt.1 Da escola de Charcot, na Salpêtrière de Paris, vieram os primeiros estímu­los para uma psicoterapia das neuroses: Pierre Janet2 iniciou suas pesquisas sobre a psicologia dos estados neuróticos, que fizeram época; Bernheim3 retomou com sucesso, em Nancy, a proposta de Liébault4 de tratar as neuroses pela sugestão, pro­posta esta que já tinha caído no esquecimento. Sigmund Freud traduziu o livro de Bernheim, e isto foi para ele um estímulo decisivo. Naquela época, ainda não existia nenhuma psicologia das neuroses e psicoses. Cabe a Freud o mérito imorredouro de ter lançado as bases para uma psicologia das neuroses. Seu ensinamento resultou da experiência adquirida no tratamento prático das neuroses, isto é, da aplicação de um método, que ele chamou de psicanálise.
1. Grundzüge der physiologischen Psychologie, 5ª edição, 1902.
2. L’Automatisme psychologique, 1889; Névroses et idées fixes, 1898.
3. Hippotyte Bernheim, De Ia Suggestion et de ses Aplications à la Thérapeutique 1886 Edição alemã de S. Freud, Die Suggestion und ihre Heilwirkung, 1888.
4. A. A. Liébault. Du Sommeil et des états analogues consideres au point de vue de l’action du moral sur le physique, 1866.

Antes de entrar numa exposição mais detalhada da matéria propriamente dita, é preciso dizer algo sobre a sua posição em relação à ciência da época. Presenciamos um espetáculo que confirma mais uma vez a observação de Anatole France: "Les savants ne sont pas curieux", os cientistas não são curiosos. O primeiro trabalho 5 de maior envergadura realizado nesse campo mal chegou a provocar um eco distante, apesar de ter introduzido uma interpretação totalmente nova das neuroses. Alguns autores faziam pronunciamentos elogios a respeito, mas, ao virar a página, prosseguiam em suas descrições de casos de histeria, à maneira habitual. Agiam, portanto, mais ou menos como alguém que reconhecesse e aprovasse a idéia ou o fato de que a terra é redonda, mas mesmo assim con­tinuasse a representá-la tranqüilamente com a forma de um disco. As publicações seguintes de Freud passaram inteiramente despercebidas, apesar de conterem observações de suma im­portância para a área específica da psiquiatria. Quando Freud escreveu a primeira verdadeira psicologia dos sonhos 6, em 1900 (anteriormente, trevas absolutas imperavam nesse campo), ridicularizaram-no. E quando, por volta de 1905, começou a lançar as primeiras luzes sobre a psicologia da sexualidade 7, puseram-se a vituperar. Essa tempestade de protestos eruditos pode ter sido a principal responsável pela publicidade sem precedentes alcançada pela psicologia de Freud, notoriedade esta que superou de longe os limites do interesse científico.
5. Breuer e Freud, Studien über Hysterie, 1895
6. Die Traumdeutung, 1900.
7. Drei Abhandlungen zur Sexualtheorie, 1905.

Por isso, temos que apreciar mais de perto essa nova psicologia. Já no tempo de Charcot, sabia-se que o sintoma neu­rótico é "psicógeno", isto é, proveniente da alma. Sabia-se tam­bém, graças principalmente aos trabalhos da Escola de Nancy, que qualquer sintoma histérico pode ser provocado pela su­gestão. Conheciam-se, igualmente, através das pesquisas de Janet, as condições psicomecânicas dos surtos histéricos, como anestesias, paresias, paralisias e amnésias. Mas não se sabia como um sintoma histérico pode proceder da alma. As rela­ções psíquicas causals eram totalmente desconhecidas. Em 1880, o Dr. Breuer, velho clínico vienense, fez uma descoberta que, na realidade, se tornou o começou da nova psicologia. Tinha uma jovem cliente, muito inteligente, que sofria de histeria, isto é, para sermos mais exatos, acusava, entre outros, os se­guintes sintomas: uma paralisação espasmódica (hirta) afetara-lhe o braço direito; era acometida por repetidas "ausências" ou estados de sonolência; além disso, tinha perdido o domínio da linguagem, pois não sabia mais falar sua língua materna e não conseguia expressar-se senão em inglês (a chamada afasia sistemática). Na época, tentaram elaborar teorias anatômicas para explicar tais distúrbios, apesar de as partes do cérebro em que estão localizadas as funções do braço não se apresen­tarem mais afetadas do que as de uma pessoa normal. A sin­tomatologia da histeria é repleta de impossibilidades anatômi­cas. Uma senhora, que havia perdido completamente a audição devido a uma afecção histérica, punha-se a cantar freqüente­mente. Certa vez, quando a cliente entoou uma canção, o mé­dico sentou-se ao piano despercebidamente e a acompanhou em surdina. Na passagem de uma para outra estrofe, mudou repentinamente de tom. A paciente, sem se dar conta, prosse­guiu, cantando no novo tom. Logo, ela ouve e não ouve. As várias formas de cegueira sistemática apresentam fenômenos semelhantes. Um homem sofre de cegueira histérica total. No decorrer do tratamento, readquire a visão, mas, a princípio e durante muito tempo, apenas parcialmente: vê tudo, exceto as cabeças das pessoas; vê todas as pessoas que o cercam, sem cabeça. Logo, ele vê e não vê. Pela observação de uma vasta série de experiências desse tipo, ficou comprovado que só a parte consciente do doente não vê ou não ouve, mas, de resto, a função do órgão do sentido está em perfeita ordem. Esse estado de coisas entra em contradição frontal com o caráter de um distúrbio orgânico, que sempre afeta a função em si.
Após essa digressão, voltemos ao caso de Breuer. Não exis­tiam causas orgânicas que justificassem a perturbação. O caso devia ser considerado histérico, isto é, psicógeno. Breuer havia notado que o estado da cliente melhorava durante algumas horas, cada vez que a deixava falar — em estado de sonolên­cia provocada ou espontânea — de todas as reminiscências e fantasias que lhe ocorressem. Utilizou-se disso sistematicamen­te, no decorrer do tratamento. A cliente inventou um nome: chamava-o de "talking cure" (conversa terapêutica) ou então, ironicamente, de "chimney sweeping" (limpar a chaminé).
A cliente adoecera quando cuidava do pai, mortalmente en­fermo. Como é compreensível, suas fantasias giravam princi­palmente em torno dessa época repleta de emoções. As suas reminiscências daquele tempo ressurgiam, nos estados de sonolência, com tamanha precisão e com tantos detalhes, que se podia supor que um pensamento desperto jamais as teria reproduzido com a mesma forma e exatidão. (Essa intensifica­ção da memória, que não raro se produz nos estados de cons­ciência diminuída, é denominada hipermnésia). Coisas insólitas foram sendo reveladas. Um dos relatos dizia mais ou menos o seguinte: Certa noite, velava o doente, que ardia em febre, angustiadíssima com o seu estado e muito tensa, porque esta­vam à espera de um cirurgião de Viena que vinha para ope­rá-lo. A mãe afastara-se por algum tempo e Ana (a paciente), sentada à cabeceira, apoiava o braço direito sobre o espaldar da cadeira. Pôs-se a sonhar acordada e viu uma cobra preta vindo da parede e aproximando-se do doente, prestes a mor­dê-lo. (É muito provável que no campo, atrás da sua casa, realmente existissem algumas cobras que já haviam assustado a menina anteriormente e que agora forneciam o material para a alucinação). Queria repelir o animal, mas estava como que paralisada: o braço direito, que pendia sobre o espaldar da cadeira, estava "dormente", anestesiado e paresiado; quando olhou para ele, seus dedos transformaram-se em pequenas co­bras com caveiras nas pontas. Provavelmente, estava querendo afugentar a cobra com a mão direita paralisada. Por isso a anestesia e a paralisia ficaram associadas à alucinação com a cobra. Quando esta desapareceu, quis rezar, angustiada; mas não conseguiu: não podia falar língua alguma; até que, final­mente, se lembrou de um verso infantil em inglês e pôde con­tinuar a pensar e a rezar nessa língua.
Nesta cena ocorreram paralisia e distúrbio da fala. Ao re­latá-la, isso desapareceu. Consta que o caso foi completamente resolvido dessa maneira.
Devo contentar-me aqui com esse único exemplo. No livro já citado de Breuer e Freud encontramos uma quantidade de exemplos similares. É bem compreensível que cenas dessa na­tureza tenham um efeito muito grande e reproduzam uma pro­funda impressão. Por esta razão, tendemos a atribuir-lhes signi­ficado causal na gênese do sintoma. A teoria procedente da Inglaterra, energicamente defendida por Charcot, do "nervosos chock" (choque nervoso), que na época dominava a interpretação da histeria, prestava-se muito bem para explicar a des­coberta de Breuer. Daí resultou a chamada teoria do trauma, segundo a qual o sintoma histérico e, na medida em que os sintomas constituem a doença, a própria histeria vêm da psique abalada (trauma), persistindo inconscientemente durante vá­rios anos as impressões produzidas. Freud, que a princípio era colaborador de Breuer, pôde comprovar fartamente essa des­coberta. Ficou demonstrado que nenhuma das espécies de sin­tomas histéricos se produz por acaso, e que esses são sempre causados por fatos que abalam a psique. Assim sendo, a nova concepção abria um vasto campo de trabalho empírico. O espí­rito pesquisador de Freud, porém, não podia fixar-se por muito tempo nessa constatação superficial, pois já surgiam proble­mas mais profundos e bem mais difíceis. É óbvio que momen­tos de intensa angústia, como os vividos pela paciente de Breuer, podem deixar marcas indeléveis. Mas como é que ela viveu esses momentos, tão nitidamente marcados pelo patológico? Será que o cansaço dos cuidados dispensados ao doente pode­riam ter provocado esse efeito? Neste caso, coisas semelhantes deveriam ocorrer com muito maior freqüência, pois, infeliz­mente, são muitos os casos de atendimento a doentes, extre­mamente extenuantes, e a saúde nervosa da pessoa que presta esses cuidados nem sempre é das melhores, evidentemente. Para este problema temos na medicina uma excelente resposta. Di­zemos: o "X" do problema é a predisposição. As pessoas são "predispostas" a tais coisas. Mas Freud indagava: em que con­siste essa predisposição? O levantamento dessa questão levou, logicamente, à investigação da "pré-história" do trauma psíqui­co. Ora, é freqüente observar-se que cenas de forte conteúdo emocional, presenciadas por diversas pessoas, têm um efeito diferente sobre cada uma delas: coisas indiferentes ou mesmo agradáveis para algumas são consideradas repugnantes por ou­tras. Haja vista o caso de sapos, cobras, ratos, gatos, etc. Há mulheres que assistem tranqüilamente a operações com efusão de sangue, mas que se põem a tremer de medo e nojo ao simples contato de um gato. Sei do caso de uma jovem que ficou sofrendo de histeria aguda, por causa de um susto. Aca­bava de sair de uma festa. Era meia-noite; em companhia de vários amigos, ia a pé para casa. De repente, aproximou-se deles, por detrás, uma carruagem em disparada. Todos afas­taram-se para os lados, menos essa moça, que, tomada de pânico, pôs-se a correr no meio da rua, na frente dos cavalos.
O cocheiro estalava o chicote e vociferava. De nada adiantou. Ela desceu a rua inteira, correndo como uma desesperada. Chegando a uma ponte, já sem forças, achou que o único meio de escapar aos cavalos seria jogar-se ao rio. Por sorte, havia lá transeuntes que a detiveram. Esta mesma pessoa es­teve por acaso em S. Petersburgo, no fatídico dia 22 de janeiro de 1905, e presenciou uma operação do exército que varria a rua com rajadas de fogo. À sua direita e à sua esquerda as pessoas iam caindo por terra, mortas ou feridas. Mantendo grande calma e presença de espírito, assim que avistou um pórtico, esgueirou-se para a outra rua, escapando sã e salva. Esses momentos de horror não lhe causaram maiores proble­mas. Depois de ter presenciado tudo isso, encontrava-se per­feitamente bem e até com mais disposição do que antes.
Esse tipo de comportamento pode ser observado com bas­tante freqüência. Donde se conclui que a intensidade de um trauma, em si, tem pouca determinação patogênica, mas este deve ter para o paciente um significado particular. Em outras palavras, não é o choque em si que provoca invariavelmente a doença, mas esta ocorre quando ele encontra uma determinada disposição psíquica, que poderia ser o fato de o paciente atri­buir inconscientemente um significado específico ao choque. Seria esta a chave do segredo da predisposição? Vejamos: quais as circunstâncias peculiares da cena da carruagem? O medo tomou conta da jovem assim que ela ouviu aproximar-se o tropel dos cavalos. Numa fração de segundo teve a impressão de que fatalmente lhe ocorreria alguma desgraça terrível/ como a morte, ou algo semelhante. A essa altura dos acontecimentos, já tinha perdido por completo o poder de raciocinar.
Parece que o momento decisivo foi determinado pelos ca­valos. A reação irresponsável da moça a um acontecimento tão insignificante deve ser atribuída a uma predisposição; prova­velmente, os cavalos tinham para ela um significado todo es­pecial. Não seria infundada, por exemplo, a suspeita de que alguma experiência perigosa em seu passado estivesse ligada a cavalos. A confirmação dessa suspeita não tardou. Quando a paciente tinha sete anos de idade, durante um passeio de car­ruagem, os cavalos dispararam, aproximando-se em vertiginosa corrida de um barranco que descia abruptamente para um rio. O cocheiro saltou, gritando-lhe que fizesse o mesmo. O medo de morrer a impedia de obedecer, mas por fim saltou a tempo, um ,segundo antes dos cavalos e da carruagem caírem no abismo. Seria desnecessário provar por A + B que são profundas as impressões deixadas por acontecimentos desse tipo. No en­tanto, isso não explica por que mais tarde uma simples e inofensiva sugestão da situação provocaria uma reação tão des­cabida. Até aqui, sabemos apenas que o sintoma manifestado mais tarde teve um preâmbulo na infância. O que há de pato­lógico no caso, porém, não foi esclarecido. É preciso conhecer outros dados, para que se possa penetrar nesse mistério. À me­dida que as experiências foram-se multiplicando, foi sendo provado que na totalidade dos casos até então analisados exis­tia, ao lado dos fatos traumáticos da vida, uma perturbação de ordem específica, situada no plano erótico. "Amor", como se sabe, é um conceito vastíssimo, que pode alcançar céus e infernos, em que se conjugam o bem e o mal, a nobreza e a baixeza. Com essa descoberta, operou-se na interpretação de Freud uma reviravolta considerável. Freud, baseando-se inicial­mente na teoria do trauma de Breuer, procurou a causa das neuroses nos acontecimentos traumáticos da vida. Mas, depois dessa descoberta, deslocou o centro do problema para outro plano, bem diverso. Podemos pegar o caso citado como exem­plo. Já compreendemos que os cavalos desempenharam, eviden­temente, um papel peculiar na vida da paciente; mas o que não entendemos é sua reação posterior, absurda e exagerada. A anormalidade da história é que cavalos totalmente inofensi­vos a assustam. Como se descobriu que juntamente com os eventos traumáticos da vida desenvolve-se uma perturbação na área erótica, baseamo-nos nisso para investigar se algo de anor­mal aconteceu nesse sentido.
A jovem conhece um rapaz de quem pretende ficar noiva; ama-o e espera que seu casamento seja feliz. Fora isso, nada se descobre de imediato. A investigação, no entanto, não pode ser abandonada após o resultado negativo de uma questão superficial. Existem caminhos indiretos, quando o direto não conduz à meta. Voltemos, pois, àquele momento estranho em que a moça saiu correndo à frente dos cavalos. Indagamos a respeito dos amigos que a acompanhavam e da festa a que tinha ido. Fora um jantar de despedida de sua melhor amiga, Que ia ausentar-se para um tratamento prolongado numa estação de águas no exterior, por causa de seu estado, nervoso. Segundo ela, a amiga é casada, feliz e mãe de um filho. Pode-os duvidar da informação acerca da felicidade da amiga, porque se assim fosse, provavelmente não teria razões para estar nervosa, necessitando de tratamento. Mais adiante, fazendo al­gumas perguntas, fiquei sabendo que, assim que os amigos a alcançaram, minha cliente foi reconduzida à casa do anfitrião, por ter sido esta a maneira mais fácil de acomodá-la àquela hora da noite. Lá chegando, em seu estado de esgotamento, teve uma acolhida hospitaleira. Neste ponto da narrativa, a paciente silenciou, embaraçada e confusa, tentando mudar de assunto. Tratava-se talvez de uma reminiscência desagradável que de repente surgira. Após vencer a resistência obstinada da paciente, fiquei sabendo que naquela mesma noite ocorrera outro incidente insólito. O amável anfitrião lhe fizera uma ar­dente declaração de amor, o que, em vista de partida da dona da casa, criara uma situação um tanto difícil e embaraçosa. Ela disse que essa declaração a surpreendera como um relâm­pago num dia de sol. Mas essas coisas sempre costumam ter seus antecedentes. Nas semanas seguintes, o trabalho consistiu em desenterrar, fragmento por fragmento, uma longa história de amor, até recompô-la por inteiro. Tentarei fazer um resumo: A paciente, quando criança, sempre tivera atitudes de menino. Só gostava de brincadeiras turbulentas, zombava do seu pró­prio sexo, reprimia toda feminilidade e evitava qualquer ocupa­ção feminina. Depois da puberdade, quando poderia ter come­çado a se interessar pelo aspecto erótico, passou a fugir de toda companhia, odiando e desprezando tudo quanto mesmo de longe lhe lembrasse a condição biológica da pessoa humana. Vivia num mundo de fantasias, que nada tinha a ver com a realidade. Assim, foi-se furtando, até aos 24 anos de idade, a todas as pequenas aventuras, esperanças e expectativas que normalmente agitam interiormente a mulher nessa idade. Foi quando teve a oportunidade de se aproximar de dois homens, que deveriam romper a cerca de espinhos que crescera ao seu redor. "A" era o marido de sua melhor amiga e "B", um ami­go solteiro. Gostava de ambos. No entanto, logo lhe pareceu que gostava muito mais de B. Não tardou em estabelecer-se uma relação de intimidade entre ela e B, e já se falava num possível noivado. Devido às suas relações com B e com sua amiga, era freqüente o seu contato com A, cuja proximidade muitas vezes a deixava agitada e inexplicavelmente nervosa. Naquela época, a paciente e seus amigos participaram de um banquete. Em dado momento, estando ela a brincar distraída com seu anel, este subitamente lhe escapou da mão, indo rolar para baixo da mesa. Os dois homens puseram-se a procurá-lo. Foi B quem o encontrou. Colocou-lhe o anel no dedo com um sorriso expressivo e perguntou: "Sabe o que isso quer dizer?" Ela teve imediatamente uma reação estranha, irresistível: arrancou o anel do dedo e jogou-o longe, pela janela aberta. Seguiu-se, naturalmente, um momento de embaraço e logo de­is ela se retirou, deixando os amigos, com um mau humor insuportável. Pouco tempo depois, foi passar as férias de verão numa estância, onde, "por coincidência", o casal A também veraneava. A mulher de A começou a ficar visivelmente ner­vosa e, como não se sentisse bem, muitas vezes não saía de casa. Logo, a paciente tinha oportunidade de passear sozinha com A. Uma vez, foram dar uma volta de barco. Ela estava contente e animada. De repente, perdeu o equilíbrio e caiu na água. Como não soubesse nadar, A só conseguiu salvá-la com muita dificuldade, puxando-a já meio desfalecida para dentro do barco. Foi então que ele a beijou. Esse interlúdio romântico ligou-os mais fortemente um ao outro. No entanto, a paciente nunca permitiu que a profundidade dessa paixão lhe viesse à consciência, provavelmente por ter-se habituado desde cedo a negligenciar impressões dessa espécie, ou melhor, a esquivar-se delas. Para justificar-se perante si mesma, fez tudo para apres­sar seu noivado com B, convencendo-se de que o amava. Obvia­mente, esse jogo surpreendente foi logo captado pela aguçada percepção do ciúme feminino. Intuitivamente, sua amiga per­cebera o segredo e torturava-se com isso, o que aumentou seu nervosismo. Donde a necessidade de um tratamento e sua via­gem ao exterior. Na festa de despedida, o espírito maligno aproximou-se da nossa doente e sussurrou-lhe ao ouvido: Hoje à noite ele estará sozinho; alguma coisa deve acontecer contigo para que venhas à sua casa. E foi o que aconteceu: seu estra­nho comportamento a levou para a casa de A. Assim, conse­guiu seu intento.
Esclarecido isso, não haverá quem não acredite que só um requinte diabólico poderia imaginar e executar um encadeamento de circunstâncias igual a esse. Do requinte, ninguém du­vida; mas o julgamento moral é altamente suspeito. Insisto em afirmar, energicamente, que os motivos que levaram a essa dramatização da paciente não eram, de forma alguma, cons­cientes. Parecia que tudo lhe acontecera por acaso, sem que tivesse consciência de qualquer um dos motivos. Mas todos os antecedentes deixam bem claro que tudo estava inconscientemente programado para esse fim. Enquanto isso, a consciência esforçava-se para levar a bom termo o seu noivado com B. A compulsão inconsciente de seguir pelo outro caminho foi, entretanto, mais forte.
Aqui voltamos às nossas considerações iniciais, isto é, à questão da origem do patológico (ou seja, o insólito, o exage­rado) da reação ao trauma. Baseado em outras experiências, suspeitei que nesse caso particular também havia, além do trauma, uma perturbação de ordem erótica. Essa suspeita foi inteiramente confirmada e leva à conclusão de que o trauma, motivo aparente da doença, nada mais é do que a oportuni­dade que algo que está fora do domínio da consciência — isto é, um importante conflito erótico — tem de se manifestar. Assim sendo, o trauma perde a exclusividade, sendo substituído por uma interpretação muito mais abrangente e profunda, que envolve um conflito erótico como agente patogênico.
Muitas vezes perguntam: por que a causa da neurose tem que ser justamente um conflito erótico e não outro conflito qualquer? A isso pode-se responder que ninguém afirma que assim seja, mas tem sido provado que é o que acontece mais freqüentemente. Apesar de todas as asserções indignadas em contrário, a verdade é que o amor 8, com todos os seus pro­blemas e conflitos, tem um significado fundamental na vida humana. Pesquisas sérias têm provado, constantemente, que a sua importância é muito maior do que o indivíduo suspeita.
Renunciou-se, portanto, à teoria do trauma, por estar su­perada. O fato de se reconhecer que não é o trauma, mas um conflito erótico oculto, que está na raiz da neurose, faz com que o trauma perca o seu significado causal.9

8. No sentido lato que lhe é atribuído naturalmente e que não compreende apenas a sexualidade. Também não queremos dizer que o erotismo e suas perturbações sejam a única fonte das neuroses. As perturbações do amor podem ser de natureza secun­dária é provocadas por causas mais profundas. Existem ainda outras possibilidades de nos tornarmos neuróticos.
9. As neuroses típicas de choque são uma exceção, como o choque de granadas, "railway spine", etc.

quinta-feira, 19 de julho de 2007

PSICOLOGIA INCONSCIENTE

OBRAS COMPLETAS DE C. G. JUNG VIl/1 — Psicologia do Inconsciente


Um livro de especial interesse para os profissionais em Psi­cologia e para os leigos que apreciam estudos dessa natu­reza. No decorrer dos anos foram feitas diversas novas edi­ções, submetidas a um contínuo processo de aperfeiçoamen­to e desenvolvimento, pelo próprio autor.

Sua intenção é simplesmente dar alguma orientação sobre as mais recentes interpretações da essência da psicologia do inconsciente. Por considerar o problema do inconsciente de extrema importância e utilidade e por saber que diz res­peito intimamente a todos e a cada um de nós, julgou opor­tuno colocá-lo ao alcance do público leigo e culto. Este estudo surgiu durante a guerra mundial e deve sua exis­tência principalmente à repercussão psicológica dessa gran­de conflagração. A guerra terminou, mas os grandes proble­mas psíquicos levantados por ela continuam preocupando a sensibilidade dos que pensam e pesquisam. O autoconhecimento de cada indivíduo, a volta do ser hu­mano às suas origens, ao seu próprio ser e à sua verdade individual e social, eis o começo da cura da cegueira que domina o mundo de hoje. O interesse pelo problema da al­ma humana é um sintoma, segundo o autor do livro, dessa volta instintiva a si mesmo.
As informações contidas neste livro não pretendem abranger a totalidade da psicologia analítica. Muitos pontos são ape­nas esboçados e outros nem são mencionados. O autor re­comenda o estudo das principais obras sobre psicologia mé­dica e psicopatologia, além de uma revisão cuidadosa dos compêndios de psicologia existentes.

A TEORIA SEXUAL

Com esta descoberta, a teoria do trauma foi resolvida e encer­rada; em seu lugar, porém, ficou a pergunta acerca do con­flito erótico, o qual, como o nosso exemplo mostra, contém uma multiplicidade de elementos anormais, não podendo ser comparado, à primeira vista, com um conflito erótico habitual. O que é peculiarmente espantoso e quase inacreditável é que, na paciente, só a atitude era consciente, enquanto que a paixão real permanecia oculta a seus próprios olhos. Neste caso, por certo, é fora de dúvida que a relação erótica real permanecia obscura, ao passo que a atitude dominava amplamente o campo da consciência. Se formularmos teoricamente tais fatos, che­garemos ao seguinte princípio: há, numa neurose, duas ten­dências em rigorosa oposição, sendo que uma delas, pelo me­nos, é inconsciente.

[Contra esta formulação pode-se argumentar que ela parece talhada para este caso individual, não possuindo portanto uma validez geral. Talvez haja uma tendência de aceitar-se tal obje­ção, porque ninguém pode concordar facilmente com o fato de que o conflito erótico constitua algo de mais amplo. A ten­dência será de considerá-lo como um tema que pertence ao romance, a algo de aleatório.12 Mas isto não corresponde à ver­dade, uma vez que os dramas mais impressionantes, e os mais excêntricos, não são desempenhados no teatro, mas no coração dos homens comuns, pelos quais passamos sem prestar atenção e que, no máximo, mostram ao mundo, através de um colapso nervoso, as batalhas que se desferem em seu íntimo. Além disso, o que é mais difícil para a compreensão dos leigos é que, em geral, os doentes não têm qualquer pressentimento da batalha que se trava em seu inconsciente. Se considerarmos, no entanto, o número de homens que nada sabem acerca de si mesmos, não devemos nos admirar de que também haja os que nada pressintam acerca de seus verdadeiros conflitos. Se leitor estiver inclinado a admitir a possível resistência de conflitos patogênicos, eventualmente oriundos do inconsciente, então protestará contra o fato de que se trata de um conflito erótico. E se for propenso ao nervosismo, poderá irritar-se contra este absurdo aparente; pois fomos acostumados pela educação recebida em casa e na escola a persignar-nos três vezes diante de palavras tais como "erótico" e "sexual". Conse­qüentemente pensamos que não há nada disso ou que, pelo menos, se trata de algo raro ou longínquo. E no entanto os conflitos neuróticos daí procedem, em primeiro lugar].
12. Ver o romance de Karin Machaelis: Eheirrung; ver também Forels: Die sexuelle Frage.

O processo da cultura consiste, como se sabe, numa subjugação progressiva do animal no homem. É um processo de domesticação que não pode ser levado a cabo sem que haja revolta por parte da natureza animal, que tem sede de liber­dade. De vez em quando ocorre como que um estado de furor na humanidade constrangida pela atuação da cultura: a Anti­güidade experimentou-o nas ondas de orgias dionisíacas que vinham do Oriente e que se tornaram um ingrediente essencial e característico da cultura antiga. Esse espírito contribuiu apreciavelmente para o desenvolvimento do ideal estóico do ascetismo, nas inúmeras seitas e escolas filosóficas do último sé­culo antes de Cristo. Foi ele que produziu, a partir do caos politeístico dessa época, as religiões gêmeas do mitraísmo e do cristianismo. Uma segunda onda de furor dionisíaco varreu o Ocidente no Renascimento. É difícil julgar o espírito do tempo a que pertencemos. Mas se observarmos os caminhos da arte, do estilo e do gosto geral e também o que os homens lêem e escrevem, que sociedades fundam, quais as "questões" que es­tão na ordem do dia e contra o que combatem os filisteus, então encontraremos no longo catálogo de nossas questões so­ciais presentes, e não em último lugar, a chamada "questão sexual". Esta é discutida por homens e mulheres que debatem a moral sexual vigente e que procuram anular o peso da culpa moral acumulada sobre Eros pelos séculos passados. É impossível negar simplesmente a existência de tais esforços, ou condená-los como injustificáveis; eles existem e têm por isso mesmo um motivo suficiente. É mais interessante e proveitoso investigar lentamente os fundamentos deste movimento contemporâneo do que engrossar o coro das carpideiras da moralidade, que pro­fetizam [num êxtase histérico] a decadência moral da humani­dade. Os moralistas têm o privilégio de não confiar em Deus, como se acreditassem que as esplêndida árvore da humanidade só pudesse prosperar graças ao cuidado de serem podadas, atadas e dispostas em fileiras, ignorando que o Pai-Sol e a Mãe-Terra permitem que ela cresça para a sua alegria, segundo leis mais profundas e sábias.
As pessoas mais lúcidas sabem que atualmente se propõe uma questão sexual. O desenvolvimento rápido das cidades, com a especialização da mão-de-obra, acarretou uma extraor­dinária divisão de trabalho; a industrialização crescente da re­gião rural, o sentimento cada vez maior de insegurança, privam os homens de «muitas oportunidades de descarregar suas ener­gias afetivas. A atividade periódica e rítmica do camponês lhe proporciona satisfações inconscientes, por causa de seu con­teúdo simbólico; o operário fabril e o empregado de escritório não conhecem e jamais poderão desfrutar de tais satisfações; a vida mergulhada na natureza, os belos momentos em que o camponês, como o senhor que faz frutificar a terra, mergulha o arado no solo e com um gesto de rei espalha as sementes para a futura colheita; o medo legítimo do poder destrutivo dos elementos, a alegria pela fecundidade de sua esposa, geran­do filhos e filhas que também significam um acréscimo da força de trabalho e um bem-estar maior, de tudo isto fomos privados, nós, homens da cidade, trabalhadores mecanizados. Não começa a faltar-nos a mais natural e bela das satisfações: a colheita de nossa própria semeadura e a "bênção" dos filhos, que olhamos com uma alegria simples? [Os casamentos onde não florescem todas as artes da alcova podem ser contados nos dedos. Não representará isto uma primeira despedida das ale­grias que a Mãe Natureza ofereceu a seus filhos primogênitos?]. Onde poderá prosperar a alegria? E os homens se esgueiram rumo ao trabalho (observe-se os rostos dos homens no ônibus às sete e trinta da manhã. Um fabrica a sua rodinha, outro es­creve coisas que não o interessam. Não admira que quase todos pertençam a tantos clubes quantos são os dias da se­mana, ou que haja pequenas sociedades para mulheres, onde elas podem dedicar-se ao herói do momento; há também aquela vaga nostalgia que os homens afogam no restaurante "Zum Frohsinn", com muito palavrório e uns goles de cerveja). A estas fontes de descontentamento acrescenta-se uma dificul­dade interior e mais grave) A natureza abasteceu os homens indefesos e desarmados com uma grande reserva de energia, a fim de torná-los capazes não só de suportar passivamente os perigos da existência, mas também de vencê-los. A Mãe-Natureza equipou seu filho para enfrentar tremendas privações (e estabeleceu o delicioso prêmio para os vencedores, prêmio ao qual Schopenhauer se refere ao afirmar que a felicidade não é mais do que a extinção da infelicidade). Via de regra, somos protegidos eventualmente contra essas necessidades vitais ime­diatas que nos afligem e por isso somos tentados todos os dias; o animal humano sempre viceja quando não é premido pela dura necessidade. Seremos realmente atrevidos? Em que festas orgiásticas gastamos o superávit de nossa força vital? Nossas concepções morais não permitem uma tal escapatória.
[Enumeramos as diversas fontes das quais mana a insa­tisfação que nos atinge: a renúncia de gerar e dar à luz, tendo sido providos pela natureza de uma grande quantidade de energia; a monotonia do trabalho especializado, que exclui o inte­resse pelo seu conteúdo e finalmente a poupança de energia por causa da segurança de nossa vida contra a guerra, a anar­quia, o roubo, as epidemias, a mortalidade de crianças e mu­lheres, tudo isto resulta numa soma de energias livres, que devem necessariamente ser desafogadas. De que modo, porém? São relativamente poucos os que, através de esportes arrisca­dos, criam para si mesmos os perigos quase naturais da vida. A maioria é compelida a criar para si mesma um equivalente das dificuldades da existência através do álcool, da caça ao dinheiro, da embriagues mórbida de cumprir o dever, do esgo­tamento pelo trabalho, a fim de escapar a um represamento ameaçador da energia, que poderia forçar uma saída insensata. Tudo isto faz com que se coloque hoje a questão sexual. A energia poderia ser liberada por este caminho como o foi, desde a Antigüidade, para fins de segurança e sustento. Nestas cir­cunstâncias se reproduzem não só os coelhos, como também os homens, mediante a pilhéria destes caprichos da natureza. Eles têm que sofrer tal pilhéria, uma vez que por causa de suas concepções moralistas se encurralaram numa gaiola es­treita, cuja perigosa exigüidade não é sentida até que a neces­sidade amarga a torne ainda mais estreita. Para o homem da cidade o espaço já se tornou muito restrito. A tentação o cerca, seduzindo-o como um cáften invisível que sussurra os segredos 3°s preservativos que protegem ou evitam as conseqüências]. Mas por que deve haver restrição moral? Será por alguma coisa que ultrapassa a consideração religiosa de um Deus ran­coroso? Deixando de lado o fato da descrença cada vez maior, um homem de fé deveria perguntar a si mesmo, tranqüilamente, se, no caso de ser Deus, puniria, uma diabrura [erótica] de Joãozinho e Maria com a danação eterna. Tais ideais não são mais compatíveis com nossa concepção decente de Deus. Nosso Deus é demasiado tolerante para fazer um estardalhaço por isso. [Patifaria e hipocrisia são mil vezes mais graves]. Assim é que a moralidade sexual13 algo ascética e principal­mente dissimulada de nosso tempo é desprovida de qualquer fundamento real. Será que poderíamos afirmar que estamos protegidos contra todas as diabruras por nossa sabedoria su­perior, ou pela visão da nulidade do comportamento humano? Infelizmente, estamos longe disso. [Pelo contrário, a sugestão tradicional mantém-nos agrilhoados e a covardia e a irreflexão fazem o rebanho continuar o trote nessa vereda]. O incons­ciente do homem possui um faro apurado para o espírito do tempo; ele adivinha suas possibilidades e sente no íntimo a insegurança dos fundamentos da moral presente, que não é mais apoiada por uma convicção religiosa viva. Aqui se origina grande parte dos conflitos éticos de nosso tempo. O impulso de liberdade colide com as barreiras frouxas da moralidade: os homens estão em tentação, eles querem e não querem. E porque não querem e não podem imaginar o que na realidade desejam, o conflito é principalmente inconsciente e daí pro­cede a neurose. Esta, como podemos ver, é intimamente liga­da ao problema de nosso tempo, representando verdadeira­mente a tentativa malograda do indivíduo resolver em si mesmo o problema geral. A neurose é um estado de desunião consigo mesmo. O motivo desta desunião, na maioria das pessoas, con­siste no fato de que a consciência deseja manter seu ideal moral, enquanto o inconsciente luta por um ideal imoral — no sentido convencional — que a consciência constantemente tenta negar. Indivíduos deste tipo pretendem ser mais decentes do que realmente são. O conflito, no entanto, pode ser o opos­to: há pessoas aparentemente muito indecorosas, que não opõem a menor restrição a si mesmas, sendo isto, no entanto, uma pose de perversidade, uma vez que abrigam no fundo o lado moral, que caiu no inconsciente. Analogamente há o caso do indivíduo decente, que abriga no inconsciente o lado indecente (os extremos devem, por isso, ser evitados tanto quanto possí­vel, pois sempre despertam a suspeita de seu oposto).
[13. A abolição dos bordéis é outro sinal nocivo e hipócrita de nossa famosa moral sexual. De qualquer maneira há prostituição; quanto menos organizada e protegida, ma» vergonhosa e perigosa se torna. Este mal existe e sempre existiu; assim pois se^e necessário uma tolerância maior a fim de que houvesse a maior higiene possível. » os homens não usassem antolhos moralistas, a sífilis já teria desaparecido há muito tempo].

Esta discussão geral foi necessária para o esclarecimento do conceito de "conflito erótico". [Este é o ponto nodal de toda concepção da neurose]. Podemos agora discutir, em pri­meiro lugar, a técnica da psicanálise e, em segundo, o proble­ma da terapia. [Esta última questão leva-nos ao exame de uma série de particularidades e de uma casuística difícil, que ultrapassa os limites desta breve introdução. Contentemo-nos por ora com este olhar lançado sobre a técnica da psicanálise].
A questão acerca desta técnica propõe-se do seguinte modo: de que maneira é possível chegar ao inconsciente do paciente pelo caminho mais curto e que também seja o melhor? O mé­todo inicial foi o hipnotismo. Interrogava-se o paciente em es­tado de concentração hipnótica, ou então se estudava á produ­ção espontânea de suas fantasias durante esse estado; tal mé­todo ainda é empregado ocasionalmente. Comparado, porém, com a técnica atual é demasiado primitivo e portanto insatis­fatório. Um segundo método foi criado na Clínica Psiquiátrica de Zurique: o chamado método de associação 14, cujo valor é principalmente teórico-experimental. Ele proporciona uma com­preensão extensa, mas superficial, do conflito inconsciente ("complexo").15 O método mais penetrante é o da análise do sonho, descoberto por Freud.16
14. Ver Jung. Diagnostische Assoziationsstudien; 2 Bände. 1906-1909.
15 A exposição da teoria do complexo encontra em Jung, Psychologie der Dementia
16. Freud, Die Traumdeutung, 1900.

Pode-se dizer do sonho, que é a pedra rejeitada pelos cons­trutores, que se tornou a pedra angular. O sonho, esse produto fugaz e modesto da nossa psique, desfruta, em nossa época, de um profundo desprezo. Antigamente, era considerado como um sinal anunciador do destino, como um portador de presságios, um mensageiro dos deuses, cujo caráter podia ser consolador. Agora o encaramos como um mensageiro do inconsciente, que deve revelar-nos os segredos escondidos pela consciência, o que ele realiza com surpreendente eficiência. Através da pes­quisa analítica do sonho verificou-se que este último, tal como se apresenta, é apenas a fachada que oculta o interior da casa. Entretanto, se observarmos determinadas regras técnicas, per­mitindo que o sonhador fale sobre as particularidades de seu sonho, logo suas idéias se centrarão num certo sentido, con­figurando determinados temas. Estes parecem ter um signifi­cado pessoal que não se presumira inicialmente atrás do sonho; mas, como mostra uma cuidadosa comparação, ele mantém uma relação [simbólica] extremamente delicada e minuciosa com a fachada do sonho.17 Este complexo particular de idéias, no qual se unem todos os elos do sonho, é o conflito buscado, ou melhor, uma variação do mesmo condicionado pelas cir­cunstâncias. Os elementos penosos do conflito são assim de tal modo escondidos ou dissolvidos, que se pode falar de uma realização de desejo; devemos porém acrescentar que os dese­jos realizados no sonho não parecem ser nossos; pelo contrário, parecem justamente opor-se a eles. Assim, por exemplo, uma filha ama ternamente a mãe e sonha — com grande angústia — que esta morreu. Em tais sonhos não parece haver qualquer realização de desejo; eles são inumeráveis, representando uma pedra de tropeço à nossa crítica erudita, uma vez que não faculta [—incredibile dictu—] a distinção entre o conteúdo la­tente do sonho e o declarado. Devemos precaver-nos contra este erro: o conflito armado no sonho é inconsciente, assim como o desejo de uma solução. A sonhadora deseja efetiva­mente que sua mãe se afaste; na linguagem do inconsciente isto significa o desejo de sua morte. Sabemos então que há no inconsciente um certo compartimento que contém tudo que se passa além das reminiscências e lembranças, inclusive todos os impulsos instintivos da infância, que não encontraram apli­cação na vida adulta, isto é, uma série de desejos egoístas infantis. Pode-se dizer que a maioria dos elementos provenien­tes do inconsciente possui, em primeiro lugar, um caráter in­fantil. Assim, por exemplo, este desejo particularmente ingê­nuo: "Quando mamãe morrer você vai casar comigo, não é, papai?" A expressão deste desejo infantil é um substitutivo (neste caso de um desejo recente de casar-se da sonhadora, desejo penoso cujos motivos ainda estão por ser descobertos). A idéia do casamento, ou melhor, a seriedade da intenção correspondente a ela foi "reprimida no inconsciente", como se costuma dizer, exprimindo-se depois de um modo necessaria­mente infantil, uma vez que o material disponível do incons­ciente consiste? em grande parte, de reminiscências infantis. [As novas pesquisas da Escola de Zurique constataram18 que tais reminiscências não são apenas infantis. Elas ultrapassam também o limites do indivíduo como "memórias da raça".
[17. As regras da análise do sonho, as leis da estrutura deste último e sua simbó­lica formam, conjuntamente, uma ciência; em todo o caso, correspondem a um_ dos mais importantes capítulos da psicologia do inconsciente, para cuja compreensão e necessário um estudo especial e meticuloso].
18. Ver Jung, Wandlungen und Symbole der Libido. 1912.

Não é este o lugar adequado para esclarecer através de muitos exemplos o domínio extraordinariamente complicado da análise do sonho; devemos contentar-nos, portanto, com os re­sultados da pesquisa: os sonhos são o substitutivo simbólico dos desejos importantes para o indivíduo, que não foram sa­tisfeitos durante o dia, sendo então "reprimidos". Em contra­posição à atitude moral dominante estão os desejos insuficien­temente reconhecidos, realizados simbolicamente no sonho e que, via de regra, são eróticos. Por isso não é aconselhável contar os sonhos para alguém que deles tem um conhecimento adequado, pois sua simbólica é muitas vezes transparente para os que conhecem suas regras. Os mais claros quanto a isso são os sonhos freqüentes de medo que, em geral, simbolizam fortes desejos eróticos].
O sonho é feito de detalhes aparentemente pueris, que des­pertam uma impressão de algo ridículo, ou então é de tal modo incompreensível em sua superfície, a ponto de deixar-nos de­sorientados. Por isso devemos sempre superar em nós mesmos uma certa resistência antes de conseguirmos desatar seu enredo complicado, através de um trabalho paciente. Quando penetra­mos no verdadeiro sentido de um sonho, mergulhamos profun­damente no segredo do sonhador e descobrimos com espanto que seu aparente absurdo é significativo ao mais alto grau e sua linguagem fala apenas das coisas extraordinariamente im­portantes e sérias da alma. Tal descoberta faz-nos sentir mais respeito pela velha superstição de que os sonhos têm um signi­ficado desconhecido, até agora, pela corrente racionalística do nosso tempo.
Como diz Freud, a análise do sonho é a via regia que leva ao inconsciente. Ela conduz-nos aos segredos mais profundos da personalidade, sendo portanto um instrumento inestimável nas mãos do médico e educador da alma. Os opositores deste método baseiam-se em argumentos que, em geral (deixando de lado as correntes subterrâneas dos pressupostos pessoais), derivam principalmente da tendência escolástica do pensamen­to erudito, ainda bastante forte em nossos dias. A análise dos sonhos descobre impiedosamente a falsa moral e as pretensões hipócritas do homem, revelando-lhe o outro lado de seu cará­ter sob uma luz crua; não admira, pois, que muitos se sintam apanhados de boca na botija. Lembro-me sempre, relativamente a isto, da admirável estátua do prazer da Catedral de Basiléia, exibindo seu doce sorriso arcaico, mas com o traseiro coberto de sapos e serpentes. A análise do sonho dá volta às coisas, revelando o outro lado. É difícil contestar o valor ético desta correção da realidade. A operação é extremamente penosa, mas também é útil, exigindo muito do médico e do paciente. A psicanálise, enquanto técnica terapêutica, consiste principalmen­te em reunir inúmeras análises de sonhos. No decorrer do tra­tamento, os sonhos fazem emergir a imundície do inconsciente, a fim de expô-la à força curativa da luz diurna e deste modo muita coisa valiosa, que se acreditava perdida, é recuperada. Trata-se de uma catarse especial, semelhante à "arte da parteira" da maiêutica socrática. É claro que, em tais circunstân­cias, a psicanálise parece uma tortura para muitos indivíduos que assumem diante de si próprios uma atitude na qual acre­ditam com veemência. Pois de acordo com o velho dito mís­tico "Dá o que tens e então receberás!" eles são chamados a abandonar em primeiro lugar suas ilusões mais íntimas è ama­das, a fim de que algo superiormente profundo e belo possa ressurgir dentro deles, em toda a sua amplitude. Só através do mistério do auto-sacrifício um homem pode encontrar-se no­vamente. É realmente uma velha sabedoria que vem à luz atra­vés do tratamento psicanalítico e é particularmente curioso o fato de que tal espécie de educação psíquica se mostre neces­sária no ápice de nossa cultura moderna. Esta forma pedagó­gica pode ser comparada à técnica de Sócrates sob vários as­pectos, se bem que a psicanálise penetre em profundidades bem maiores.
Sempre encontramos nos doentes um conflito que se liga, num determinado ponto, aos grandes problemas da sociedade; quando a análise chega a esse ponto, o conflito aparentemente individual revela-se um conflito universal de seu ambiente e de sua época. A neurose, portanto, é uma tentativa individual e malograda de resolver um problema geral; mas este problema geral, esta questão não é um ens per se, existindo apenas no coração dos indivíduos. [A questão que mobiliza os doentes é — I can't help it — a "questão sexual" ou mais exatamente o problema da moral sexual moderna. Sua exigência crescente sobre a vida e a alegria vital, sobre o colorido da realidade, suporta os limites necessários que a realidade lhe impõe, mas não as barreiras arbitrárias e mal fundadas da moral presente. Esta, das profundidades da escuridão animal, estiola o espírito criador que ascende. Pois] o neurótico tem a alma de uma criança, que suporta com dificuldade as restrições arbitrárias, cujo sentido ele não reconhece. Embora procure concordar cora essa moral, acaba sucumbindo a um dilaceramento pro­fundo, a um estado de desunião consigo mesmo. Por um lado, ele quer suprimir-se e por outro, libertar-se: a esta luta dá-se o nome de neurose. Se tal conflito fosse claramente conscien­tizado, os sintomas neuróticos não se formariam; estes apare­cem quando não encaramos o outro lado da nossa natureza e a urgência de seus problemas. Nestas circunstâncias os sintomas se manifestam e ajudam a exprimir o lado não reconhecido da psique. O sintoma é pois uma expressão indireta de um desejo que não se reconhece; quando este se torna consciente, entra em conflito violento com nossas convicções morais. Como já dissemos, se este lado sombrio da psique for subtraído da compreensão consciente, o doente não poderá confrontar-se com ele, corrigi-lo, conformar-se com ele, ou então renunciá-lo; pois na realidade ele não possui de forma alguma os impulsos in­conscientes. Expulsos da hierarquia da psique consciente, eles se tornam complexos autônomos, que podem ser postos de novo sob o controle consciente, através da análise do inconsciente. Isto não se dá sem grandes resistências. Há muitos pacientes que se vangloriam, dizendo que o conflito erótico não existe para eles; afirmam que a questão sexual é absurda, pois não possuem qualquer sexualidade. Não percebem que outras coisas de origem desconhecida lhes impedem o caminho: caprichos histéricos, enredos que fazem em relação a si mesmos e a ou­tros, um catarro estomacal de fundo nervoso, dores aqui e acolá, irritabilidade sem motivo e todo um exército de sinto­mas nervosos. [Aqui está o engano, pois o grande conflito dos homens cultos de hoje passa relativamente despercebido só a poucos dentre os particularmente favorecidos pela sorte; a gran­de maioria toma necessariamente parte neste conflito geral].
A psicanálise já foi acusada de liberar no homem (feliz­mente) os instintos animais reprimidos, causando deste modo um dano incalculável. Esta apreensão evidencia a pouca con­fiança que o homem deposita na eficácia dos princípios morais modernos. Pretende-se, aparentemente, que só a moral possa impedir o homem de entregar-se ao desregramento; no entanto, instância reguladora muito mais atuante é a necessidade, estabelece limites reais, muito mais persuasivos do que os Preceitos morais. É certo que a análise libera os instintos animais, mas não, como alguns pretendem, no sentido de dar-lhes um curso desenfreado. A análise tenta conduzir esses instintos a uma aplicação superior, na medida em que isto é possível para a pessoa em questão e uma vez que haja uma exigência de ("sublimação"). Conseqüentemente, em todas as circunstân­cias há vantagem em ter plena posse da própria personalidade. Se assim não for suas partes reprimidas perturbarão outras etapas do caminho, e não em pontos sem importância; pertur­barão justamente os pontos em que se for mais sensitivo. Tal verme sempre rói o cerne. [Portanto em lugar de combater-se a si próprio, é melhor aprender a carregar o próprio fardo, não apenas tentando elaborar inutilmente as dificuldades in­ternas sob a forma de fantasias, mas colocando-as nas vivên­cias reais. Deste modo o indivíduo evitará viver e consumir-se somente em lutas inúteis]. Se os homens fossem educados no sentido de ver o lado sombrio de sua natureza, provavelmente aprenderiam a compreender e a amar verdadeiramente os seus semelhantes. Um pouco menos de hipocrisia e um pouco mais de tolerância em relação a si mesmo só podem dar bons resul­tados em relação ao próximo; pois o homem tem uma inclina­ção nítida para transferir aos seus semelhantes a injustiça e a violência que exerce sobre a sua própria natureza.
[[A ligação do conflito individual com o problema geral coletivo estende o âmbito da psicanálise além do círculo restrito de uma simples terapia médica; a psicanálise proporciona ao paciente uma sabedoria de vida baseada num conhecimento empírico que lhe dá, ao lado do conhecimento do seu próprio ser, as possibilidades de adaptar-se a esta ordem de coisas. Não podemos detalhar aqui em que consistem estas diversas formas de conhecimento. É difícil também, a partir da litera­tura até agora apresentada, construir uma imagem adequada da análise, uma vez que ainda não foi publicado nada de sufi­cientemente satisfatório no tocante a uma técnica de análise mais profunda. Neste domínio grandes problemas estão ainda à espera de uma solução satisfatória. Infelizmente é pequeno o número de pesquisadores científicos, pois a maioria conserva ainda muitos preconceitos para que possam colaborar nessa importante obra.
Todas estas manifestações estranhas e maravilhosas que se agrupam em torno da psicanálise — segundo os princípios psicanalíticos — fazem supor que ocorrerá algo de muito signi­ficativo neste campo, trazendo ao público letrado (como habi­tualmente) em primeiro lugar a defesa dos mais vivos afetos]].

OS PRIMÓRDIOS DA PSICANÁLISE

COMO todas as ciências, a psicologia também teve sua época escolástica, que perdura em parte até nossos dias. Pode-se objetar a este tipo de psicologia o fato de decidir ex-cathedra como a psique deve constituir-se e quais as qualidades que lhe cabem neste mundo e no outro. O espírito da moderna ciência natural acabou com tais fantasias, estabelecendo em seu lugar um método empírico exato. Daí surgiu a psicologia experimental hodierna, ou "psicofisiologia" como a chamam os franceses. O pai deste movimento foi Fechner, espírito contestador que, com sua Psychophysik2, ousou introduzir o ponto de vista físico na concepção dos fenômenos psíquicos. Esta idéia e não o erro admirável desta obra representou uma ver­dadeira força fecundante. Contemporâneo de Fechner e mais jovem do que ele, Wundt foi, por assim dizer, o aperfeiçoador da obra do primeiro. Sua grande erudição, capacidade de trabalho e gênio no campo da investigação de novos métodos experimentais criaram a tendência dominante da psicologia moderna.

2. Leipzig 1860.

Há pouco tempo ainda a psicologia experimental era essen­cialmente acadêmica. A primeira tentativa digna de nota no sentido de aproveitar, pelo menos alguns dos numerosos mé­todos na prática psicológica, partiu dos psiquiatras da antiga escola de Heidelberg (Kraepelin, Aschaffenburg, e outros); os médicos dos processos mentais sentiram pela primeira vez, tal como se pode supor, a necessidade premente de um conheci­mento exato dos fenômenos psíquicos. Em segundo lugar, a Pädagogik apareceu com suas próprias exigências no campo da psicologia. Daí surgiu recentemente uma "pedagogia expe­rimental", em cujo campo Meumann, na Alemanha e Binet, na França, prestaram uma contribuição importante.
Para ajudar realmente seus pacientes, o médico "especia­lista em moléstias nervosas" precisa forçosamente dispor de conhecimentos psicológicos. Tudo que é designado pelo termo de "estado nervoso": a histeria, etc, tem uma origem psíquica e requer, portanto, logicamente, um tratamento psíquico. Água fria, luz, ar, eletricidade, magnetismo, etc, tem um efeito tran­sitório e na maior parte dos casos são absolutamente inúteis. Representam às vezes artifícios de má reputação, no sentido de sugestionar o paciente. A doença, no entanto, radica na psique e assim na mais alta e complexa das funções, que difi­cilmente podemos incluir no campo da medicina. Aqui o médico deve ser também um psicólogo e isto significa que precisa ser conhecedor da psique humana. Ele não pode esquivar-se a esta necessidade. Assim pois terá de recorrer naturalmente à psicologia, uma vez que seus livros de psiquiatria nada lhe ensinam. A psicologia experimental hodierna está longe, porém, de poder comunicar-lhe uma visão articulada daquilo que cons­titui, praticamente, os processos mais importantes da psique, pois sua meta é outra. Ela procura isolar os processos mais simples e elementares, que ficam nos limites da fisiologia, a fim de estudá-los separadamente. É pouco amiga da infinita variedade e mobilidade da vida psíquica individual e por isso seu conhecimento da realidade e dos detalhes essenciais dessa vida carece de conexão orgânica. Portanto, quem quiser conhe­cer a psique humana infelizmente pouco receberá da psicologia experimental. O melhor a fazer seria [pendurar no cabide as ciências exatas, despir-se da beca professoral, despedir-se do gabinete de estudos e caminhar pelo mundo com um coração de homem: no horror das prisões, nos asilos de alienados e hospitais, nas tabernas dos subúrbios, nos bordéis e casas de jogo, nos salões elegantes, na Bolsa de Valores, nos "meetings" socialistas, nas igrejas, nas seitas predicantes e extáticas, no amor e no ódio, em todas as formas de paixão vividas no pró­prio corpo, enfim, em todas essas experiências, ele encontraria uma carga mais rica de saber do que nos grossos compêndios.
Então, como verdadeiro conhecedor da alma humana, tomar-se-ia um médico apto para ajudar seus doentes. Poder-se-ia perdoar-lhe o pouco respeito pelas assim chamadas "pedras angulares" da psicologia experimental. Pois entre o que a ciência chama de "psicologia" e o que a práxis da vida diária espera da "psicologia" "há um abismo profundo".
Tal deficiência tornou-se o ponto de partida de uma nova psicologia. Em primeiro lugar devemos sua criação a Sigmund Freud, de Viena, o médico genial e investigador das doenças nervosas funcionais. Pode-se designar a psicologia inaugurada por ele como uma psicologia analítica. Bleuler sugeriu o nome de "psicologia profunda"3 a fim de indicar que a psicologia freudiana trata das regiões profundas, ou do interior da psique que também se designa pelo nome de inconsciente. O próprio Freud chamava o método de sua investigação de psicanálise. É este o nome pelo qual sua posição psicológica é geralmente conhecida.
3. E Bleuler, die Psychoanalyse Freuds. Jahrbuch für psychoanalytische Forschungen.

Antes de entrar na exposição dos fatos propriamente ditos, queremos dizer algo sobre suas relações com a ciência até então reconhecida. Aqui deparamos com um espetáculo curioso, que confirma a verdade desta observação de Anatole France: "Les savants ne sont pas curieux". O aparecimento da primeira obra de vulto 4 neste campo despertou apenas um fraco inte­resse, apesar de sua concepção fundamental e totalmente nova das neuroses. Alguns autores escreveram elogiosamente sobre ela, continuando na página seguinte a explicar os casos de his­teria segundo a velha maneira. Agiram mais ou menos como alguém que tendo louvado a idéia ou o fato da terra ser esfé­rica, continuasse calmamente a representá-la como se fosse plana. Depois desta publicação Freud publicou um ensaio 5 que passou quase completamente despercebido, embora contivesse, Por exemplo, observações de uma importância inestimável no campo da psiquiatria. Quando, em 1899, Freud escreveu a pri­meira verdadeira psicologia dos sonhos 6 (reinara até então na obscuridade noturna nesse domínio), as pessoas começa­ram a rir. Mas quando em meados da última década ele co­meçou a trazer à luz a psicologia da sexualidade 7, puseram-se insultá-lo, às vezes do modo mais obsceno e isto perdurou até recentemente.
4. J. Breuer und S. Freud, Studien über Hysterie, 1895.
5. Sammlung kleiner Schriften zur Neurosenlehre, 2 Bände. 1906.
6. Die Traaumdeutung. 1900.
7.Die Abbandlungen zur Sexualtheorie, 1905.

O cuidado com que essas obras foram estu­dadas pode ser reconhecido na ingênua observação de um dos mais eminentes neurologistas de Paris, por ocasião do Congres­so Internacional de 1907, durante o qual ouvi com meus pró­prios ouvidos: "Eu não li as obras de Freud" (ele não conhecia a língua alemã). "Mas quanto às suas teorias, acho que não passam de uma "mauvaise plaisanterie". [Freud, o digno e velho mestre, disse-me certa vez: "Para falar a verdade, só cheguei à clara consciência da minha descoberta, quando se manifestaram por todos os lados as resistências e a indigna­ção; desde então aprendi a julgar o valor da minha obra se­gundo o grau da resistência oposta a ela. Houve uma enorme onda de indignação contra a teoria sexual, parecia que o me­lhor era escondê-la. Os verdadeiros benfeitores da humanidade parecem ser os corruptores: a resistência contra os ensinamen­tos falsos incita o homem à verdade. Mas aquele que diz a ver­dade é, na opinião geral, um ser nocivo que incita o homem ao erro".
O leitor poderá supor tranqüilamente que se trata, nesta psicologia, de algo inédito, mas que nada tem de racional, de uma sabedoria oculta ou sectária; pois quem poderia impedir todas as autoridades científicas de recusarem as coisas a limine?]
Olhemos no entanto mais de perto esta nova psicologia. Já nos tempos de Charcot sabia-se que o sintoma neuró­tico era "psicogênico", isto é, proveniente da psique. Sabia-se também, graças aos trabalhos da escola de Nancy, que todo sintoma histérico pode ser produzido exatamente do mesmo modo pela sugestão. Mas não se sabia como um sintoma his­térico se origina na psique, uma vez que as conexões causais do psiquismo eram totalmente desconhecidas. No começo do século XVIII, o Dr. Breuer, um velho clínico de Viena, fez uma descoberta 8, que se tornou o verdadeiro ponto de partida da nova psicologia. Tinha uma jovem paciente de inteligência no­tável, que sofria de histerismo. Entre outros, manifestavam-se os seguintes sintomas: paralisia espástica (rigidez) do braço direito, e de vez em quando "ausências" ou estados crepusculares; ela perdera também o domínio da linguagem, isto é, não conseguia mais expressar-se na língua materna, mas somente falava o inglês (afasia sistemática). Propôs-se naquela época e ainda hoje são propostas teorias anatômicas para explicar esse distúrbio, apesar de que o centro cortical correspondente à fun­ção do braço apresente aqui um transtorno tão discreto como o que se manifesta no centro correspondente de uma pessoa normal [quando esta dá uma bofetada na outra]. A sintoma­tologia da histeria é cheia de impossibilidades anatômicas. Uma senhora que perdera completamente a audição por causa de uma afecção histérica, costumava cantar freqüentemente. Certa vez, enquanto cantava, seu médico sentou-se disfarçadamente a0 piano e começou a acompanhá-la, tocando de leve; ao passar de uma estrofe para outra, ele mudou de repente a tonalidade e a paciente, sem perceber, continuou a cantar na nova tona­lidade. Portanto, ela ouvia e não ouvia. As várias formas de cegueira sistemática apresentam fenômenos semelhantes. Um homem sofria de uma cegueira histérica total. No correr do tratamento recuperou a vista, a princípio só parcialmente e por um longo período de tempo; podia ver tudo, exceto as cabeças das pessoas. Via todos que o cercavam, mas sem as cabeças. Portanto, via e não via. Depois de um grande número de ex­periências dessa espécie concluiu-se, há muito, que só a cons­ciência dos doentes não vê e não ouve; as funções sensoriais, porém, nada apresentam de irregular. Tal fato contradiz dire­tamente o caráter orgânico da perturbação que sempre afeta a função, de um modo ou de outro.
8. V. Breuer und Freud, Studien über Hysterie. 1895.
Depois desta digressão, voltemos ao caso de Breuer. Não havia causas orgânicas que justificassem a perturbação, de mo­do que esta devia ser considerada como histérica, isto é, psicogênica. Breuer havia observado que, se durante os estados crepusculares da paciente (fossem eles espontâneos ou induzi­dos), conseguisse fazê-la narrar as reminiscências e fantasias que a pressionavam, isto a aliviava durante algumas horas. Ele utilizou sistematicamente esta observação no tratamento ulterior. A paciente inventou um nome que se aplicasse ao trata­mento, chamando-o de "talking cure" e também, por brincadeira, de "chimney-sweeping".
Essa paciente adoecera ao tratar do pai, acometido de uma doença mortal. Naturalmente, suas fantasias se relacionavam de um modo geral com esse período de aflição. As reminiscências desses dias afloravam em seus estados crepusculares comi uma fidelidade fotográfica; eram tão vividas, em seus menores detalhes, a ponto de ser difícil acreditar que a melhoria desperta fosse capaz de uma reprodução de tal modo plástica e exata. (Dá-se o nome de hipermnesia a essa intensificação dos poderes da memória, que podem ocorrer facilmente em certos estados de consciência). Emergem então coisas sin­gulares. Uma dentre as muitas narrativas é mais ou menos esta:
"Numa noite de vigília, angustiada, à cabeceira do doente que estava muito febril, ela se sentia tensa, esperando um cirurgião de Viena que devia chegar para a operação. Sua mãe saíra do quarto por instantes e Ana (a paciente) sentou-se perto da cama do doente, o braço direito pen­dente por sobre o espaldar da cadeira. Ela mergulhou numa espécie de sono acordado e viu uma serpente negra sair da parede, aproximando-se do doente, como que para mordê-lo (provavelmente havia serpentes no campo, atrás da casa, que já haviam assustado a jovem e forneciam agora o material da alucinação). Ela queria afugentar o réptil, mas estava como que paralisada: o braço direito que pendia no espaldar da cadeira parecia "adormecido", anestesiado, parético e como olhasse os dedos, ela os viu transformados em pequenas serpentes com caveirinhas [unhas]. Provavel­mente ela esforçou-se por afugentar a serpente com a mão direita para­lisada; assim o sentimento de anestesia e paralisia ficou associado à alu­cinação com a serpente. Quando, afinal, esta desapareceu, a jovem quis orar em meio à angústia, mas não conseguiu pronunciar uma só palavra. Lembrou-se finalmente de um versinho infantil, em inglês, e foi assim que continuou a pensar e a orar nesta língua". 9
9. Breuer und Freud, Studien über Hysterie, p. 30.

Foi esta a cena que motivou a paralisia e a perturbação da linguagem e mediante a narração da mesma cena a pertur­bação desapareceu. Desta forma o caso foi resolvido satisfa­toriamente.
Contento-me em citar aqui este único exemplo. No livro já mencionado de Breuer e Freud encontramos numerosíssimos exemplos desta espécie. Compreendemos facilmente que cenas desta natureza são muito fortes o impressionantes; por isso há uma tendência a atribuir-lhes um significado causal no apa­recimento dos sintomas. A concepção corrente da histeria, nessa época, derivada na teoria inglesa do "nervous shock", energicamente defendida por Charcot, era apropriada para ex­plicar a descoberta de Breuer. Daí originou-se a assim chamada teoria do trauma, a qual afirma que o sintoma histérico (e na medida em que os sintomas constituem a doença, a histeria em geral) deriva dos golpes psíquicos (traumas), cuja marca per­dura inconscientemente através dos anos. Freud, que começou colaborando com Breuer, confirmou exaustivamente tal desco­berta. Tornou-se claro que nenhum, dentre centenas de sinto­mas histéricos, surgia por acaso, mas que decorria de aconte­cimentos psíquicos. A nova concepção abriu um amplo campo para o trabalho empírico. Mas a mente investigadora de Freud não podia permanecer muito tempo neste nível superficial, uma vez que problemas mais difíceis e profundos começavam a aparecer. É óbvio que esses momentos de extrema ansiedade, tais como a paciente de Breuer experimentou, podem deixar uma impressão duradoura. Mas como ela poderia escapar a tais experiências se já trazia em si a marca da doença? Pode­ria ter sido a tensão de cuidar do doente o fator decisivo? Se assim fosse, deveria haver um número muito maior de acontecimentos dessa espécie, pois são muitos, infelizmente, os casos exaustivos de tal cuidado e a saúde nervosa da enfermei­ra nem sempre é excelente. A medicina deu uma ótima res­posta a esta questão: "O x do problema é a predisposição". O indivíduo é portador de uma predisposição. Mas o problema, para Freud, consistia em saber o que constitui tal predisposição. Esta pergunta conduz logicamente ao exame da história ante­rior ao trauma psíquico. É um fato conhecido que cenas exci­tantes podem ter efeitos muito diferentes sobre as pessoas que delas participam. Sabe-se também que a visão de certas coisas é indiferente, ou mesmo agradável para algumas, despertando em outras, só em pensar, o maior horror: rãs, serpentes, ratos, gatos, etc. Há casos de mulheres que assistem tranqüilamente operações sangrentas, mas que tremem de medo ao contato de um gato. Conheço o caso de uma jovem senhora que sofria de uma histeria aguda, em conseqüência de um susto repentino. À meia-noite, depois de uma reunião, estava a caminho de sua casa em companhia de vários conhecidos, quando um coche apareceu atrás deles, em disparada. Todos se desviaram mas ela, como que fascinada pelo terror, ficou no meio da rua e começou a correr adiante dos cavalos. O cocheiro estalou o chicote, praguejou; foi inútil, ela continuava a correr rua abai­xo, até que esta desembocou numa ponte. Lá chegando, ela perdeu as forças e para não ficar sob as patas dos cavalos teria, em seu desespero, se atirado ao rio, se os transeuntes não a tivessem impedido. Pois bem, esta mesma senhora esti­vera no sangrento 22 de janeiro em São Petersburg, na mesma rua que foi "limpa" pelo fogo de artilharia. Em torno dela, à direita e à esquerda, caíam pessoas mortas ou feridas; ela po­rem com a maior calma e lucidez espreitava um portão pelo qual conseguiu escapar para outra rua. Este momento terrível não lhe causou qualquer dificuldade. Ela sentia-se depois perfeitamente bem — melhor do que seria o normal.
Reações semelhantes são freqüentemente observadas. Disto decorre o fato de que a intensidade do trauma em si mesmo tem pouco significado patogênico; tudo depende das circuns­tâncias particulares que o cercam. E aqui temos a chave da predisposição. Devemos portanto indagar: quais são as circuns­tâncias particulares da cena com o coche? O medo da paciente começou com o ruído dos cavalos galopando; por um instante isto lhe pareceu como que o presságio de algo terrível — sua morte ou qualquer coisa de espantoso. Depois, perdeu com­pletamente a consciência do que estava fazendo.
O efeito momentâneo proveio evidentemente dos cavalos. A predisposição da paciente para reagir de um modo tão es­tranho a este acontecimento banal residia no significado par­ticular de que os cavalos se revestiam para ela. Poder-se-ia conjeturar, por exemplo, que já lhe tivesse ocorrido algum acidente perigoso com cavalos. Era este realmente o caso. Apro­ximadamente aos sete anos de idade, durante um passeio com o cocheiro, os cavalos se espantaram de repente e, numa corrida desabalada, se aproximaram da margem abrupta de um rio que corria numa garganta profunda. O cocheiro pulou fora e lhe gritou para fazer o mesmo, mas ela se sentia imobilizada por um pavor mortal. Entretanto, no momento exato em que coche e cavalos se precipitavam no fundo, conseguiu saltar. Não há necessidade de provas para que se compreenda a im­pressão marcante causada por um fato desta espécie. Ele não esclarece, no entanto, por que mais tarde um sinal aparente­mente tão inofensivo desencadeou uma reação de tal modo insensata. Até agora só sabemos que o sintoma tardio teve um prelúdio na infância. Mas o aspecto patológico permanece obscuro. Para penetrar tal mistério, precisamos recorrer a ou­tras experiências. Tornou-se claro, com o enriquecimento da experiência que, em todos os casos analisados até agora, existe ao lado da experiência vital traumática uma espécie particular de perturbação, que só pode ser descrita como uma pertur­bação no domínio do amor. É certo que o "amor" constitui um conceito algo elástico, que vai do céu ao inferno, abrangendo o bem e o mal, o alto e o baixo.10 Mediante tal descoberta, a concepção de Freud operou uma transformação notável. Se mais ou menos sob o fascínio da teoria do trauma de Charcot ele buscara a origem da neurose nas experiências traumática deslocou agora o centro de gravidade do problema para um ponto inteiramente diverso. O nosso exemplo ilustra isto da melhor maneira possível. Podemos compreender que os cavalos tivessem desempenhado um papel especial na vida da paciente, mas não compreendemos sua reação tardia, tão exagerada e inoportuna. A peculiaridade patológica desta história não reside no fato de que ela se tenha apavorado com os cavalos. Lem­bremo-nos da descoberta empírica mencionada acima de que, ao lado dos acontecimentos vitais traumáticos, há geralmente uma perturbação no domínio do amor; neste caso, devemos pesquisar o que não vai bem em relação a este aspecto.
10. A antiga frase mística é válida também para o amor: "O céu em cima, o céu embaixo, o éter em cima, o éter embaixo, compreende isto e alegra-te".

A paciente em questão conhecera um jovem e pensara em casar-se com ele; ela o amava e esperava ser feliz nessa união. A princípio, nada mais claro. Entretanto, nenhum elemento deve ser omitido devido à insignificância do aspecto superficial da questão. Há caminhos indiretos para alcançar a meta, quan­do falha a via direta. Voltemos, portanto, ao momento par­ticular em que a jovem senhora corria impensadamente à frente dos cavalos. Perguntamos acerca de seus companheiros e que espécie de reunião festiva fora aquela, da qual participara. Fora uma festa de despedida de sua melhor amiga que partia para longe, a fim de fazer uma estação de cura, por causa dos ner­vos abalados. Essa amiga é casada e, segundo dizem, feliz; é mãe de uma criança. Devemos, no entanto, desconfiar dessa informação, pois se ela fosse verdadeiramente feliz não teria razão alguma de ser "nervosa", nem precisaria de uma cura. Perguntando acerca de outros pontos, fiquei sabendo que de­pois de ter sido socorrida pelos amigos, estes a levaram de volta à casa da amiga, por ser o refúgio mais próximo. Lá che­gando, exausta, foi recebida com hospitalidade. Neste ponto a paciente interrompeu a narrativa, ficou embaraçada, confusa e procurou mudar de assunto. Evidentemente tratava-se de algu­ma reminiscência desagradável, que viera à tona. Depois da mais obstinada resistência de sua parte, ficou bem claro que ocorrera naquela noite algo de muito singular: o amigo que a hospedava fez-lhe uma ardente declaração de amor, precipitando uma situação que devido a ausência da dona da casa deve ter sido difícil e penosa. Parece que essa declaração de amor caiu como um raio. Mas coisas deste tipo têm normalmente sua estória. Em algumas semanas desenterrei, peça por peça, uma longa história de amor, até que finalmente disso resultou um Quadro completo que tentarei esboçar aqui: quando criança, a paciente tinha sido um "Joãozinho" pueril, gostava só de brin­cadeiras selvagens de menino, zombava de seu próprio sexo e fugia a todas as ocupações femininas. Depois da puberdade, quando o problema erótico se acentuou, ela começou a evitar toda espécie de companhia e a odiar tudo aquilo que lembras-se, mesmo de longe, a disposição biológica do ser humano, vi­vendo num mundo de fantasias, que nada tinha em comum com a realidade brutal. Assim, até os vinte e quatro anos, evi­tou todas as pequenas aventuras, esperanças e expectativas que geralmente motivam as mulheres dessa idade. (Estas, no que se refere a este aspecto, são muitas vezes insinceras consigo mesmas e com o médico). Ela conheceu então, mais de perto, dois homens que deveriam quebrar a cerca de arame farpado que pusera em torno de si. A. era o marido de sua melhor amiga e B., seu amigo solteiro. Ela gostava de ambos. Logo, porém, pensou preferir muito mais B. Assim, logo se estabele­ceu entre ambos uma relação íntima e se falava de um possí­vel noivado. Através de suas relações com B. e através de sua amiga, ela pôs-se de novo em contato com A., cuja presença a perturbava muitas vezes inexplicavelmente, irritando-a. Nessa ocasião a paciente foi a uma reunião muito concorrida e lá encontrou seus amigos. Num certo momento, perdida em pen­samentos, brincava distraidamente com o anel, que de' repente escapou de seu dedo, caindo sob a mesa. Seus dois amigos procuraram-no e foi B. que o encontrou. Colocando-o no dedo da jovem, disse-lhe com um sorriso significativo: "Você sabe o que isto significa!" Tomada por um sentimento estranho e irresistível, ela arrancou o anel do dedo e o jogou pela janela aberta. Seguiu-se um momento penoso e pouco depois ela aban­donou a reunião, extremamente abatida. Apos este incidente aconteceu o assim chamado acaso: ela passou as férias de verão numa estação de cura, onde sua amiga e A. também estavam. A amiga começou a ficar visivelmente nervosa e muitas vezes não saía. As circunstâncias eram favoráveis para que a paciente e A. saíssem juntos. Certa vez, passeavam num pequeno bote. Ela estava de tal modo alegre e agitada, que acabou caindo no mar. Como não soubesse nadar, A. conseguiu salvá-la com di­ficuldade, puxando-a quase sem sentidos para dentro do bote. Então ele a beijou. Com este episódio romântico, o vínculo foi consolidado. Para desculpar-se diante de si mesma, ela con­tinuou energicamente o noivado com B., tentando persuadir-se de que era ele a quem amava. É claro que este jogo curioso não escapou ao olhar perspicaz da esposa ciumenta. Sua amiga adivinhou-lhe o segredo, atormentou-se, ficando com os nervos abalados. Precisou, então, partir para o estrangeiro a fim de curar-se. Na festa de despedida, o mau espírito soprou ao ou­vido da nossa paciente: "Esta noite ele está só. Deve acontecer alguma coisa para que você vá à casa dele". E foi isto o que aconteceu: devido ao seu estranho comportamento ela voltou a casa de A., tal como desejara.
Depois deste esclarecimento provavelmente todos se incli­narão a afirmar que só um refinamento diabólico inventaria um tal encadeamento de circunstâncias, pondo-o a funcionar. Não há dúvida quanto ao refinamento, mas sua avaliação moral não é tão segura; devo sublinhar que os motivos que levaram a esse dénouement dramático não eram de forma alguma cons­cientes. Para a paciente, a história parecia desenrolar-se por si mesma, sem que ela tivesse consciência de qualquer motivo. Mas a história prévia torna claro que tudo estava inconscien­temente dirigido para este fim, enquanto o consciente lutava por efetivar o noivado com B. O impulso inconsciente na di­reção oposta foi mais forte.
Voltamos aqui de novo à questão inicial, à pergunta acerca da proveniência da natureza patológica (isto é, peculiar, exces­siva) da reação ao trauma. À base de uma conclusão extraída de experiências, conjeturamos que neste caso também deve ha­ver, além do trauma, uma perturbação no domínio erótico. Esta conjetura foi inteiramente confirmada e aprendemos que o trauma, causa manifesta da doença, não é mais do que uma ocasião para que se manifeste algo que de início não é cons­ciente, a saber, um forte conflito erótico. Com isso, o trauma perde seu significado patogênico e é substituído por uma com­preensão muito mais profunda e abarcante, que vê o agente patogênico como um conflito erótico.
Muitas vezes me perguntam: Por que o conflito erótico é principal causa das neuroses? A isso só podemos responder: Ninguém afirma que deve ser assim, mas que simplesmente é assim. Apesar de todos os protestos indignados em contrário, o fato é que o amor11, seus problemas e conflitos, se mostra de uma importância fundamental na vida humana e, como revela uma pesquisa cuidadosa, tem um significado muito maior do o indivíduo imagina.
11. O amor tomado aqui, naturalmente, em seu sentido mais amplo, que não ve apenas a sexualidade.

A teoria do trauma foi deixada de lado por ser antiquada; a descoberta de que não é o trauma, mas sim um conflito erótico escondido, que está à raiz da neurose, fez com que o trauma perdesse completamente seu significado patogênico.

O problema dos tipos de atitude

COMO as duas teorias descritas nos capítulos anteriores são inconciliáveis, é preciso encontrar um ponto de vista acima delas, em que a unificação seja possível.
Não podemos conde­nar uma simplesmente para favorecer a outra, por mais cô­moda que seja essa solução; porque, quando as duas teorias são examinadas sem parcialidade, não se pode negar que am­bas contêm verdades fundamentais. Por mais contraditórias que sejam, uma não exclui a outra. A teoria freudiana nos se­duz por sua simplicidade, a tal ponto que quase nos causa lástima ao ser atacada por uma afirmação em contrário. O mesmo vale para a teoria de Adler, que também é de uma simplicidade luminosa e convence tanto quanto a de Freud. Não surpreende, pois, que os adeptos de ambas as escolas se aferrem intransigentemente às suas respectivas teorias — cer­tas, porém unilaterais. É humano e compreensível que não es­tejam dispostos a renunciar a uma teoria belíssima e perfeita, trocando-a por um paradoxo ou, o que é pior ainda, perdendo-se na confusão de pontos de vista contraditórios.
Como ambas as teorias são amplamente certas e, ao que parece, explicam a matéria, é óbvio que a neurose deve ter dois aspectos contraditórios, um dos quais é apreendido pela teoria de Freud e o outro, pela de Adler. Como é que um cien­tista só vê um lado e um outro só o outro? Por que cada um Pensa que a sua posição é a única válida? Provavelmente porque ambos vêem na neurose antes de tudo aquilo que corres­ponde à sua característica pessoal. É pouco provável que os casos de neurose que Adler chegou a analisar tenham sido inteiramente diversos dos que Freud conhecia. É lógico que ambos tenham partido de um mesmo material de experiência, como a peculiaridade de cada um faz enxergar as coisas maneira diferente, desenvolvem opiniões e teorias totalmente diversas. Adler vê como um sujeito que se sente inferior e der­rotado procura aceder a uma superioridade ilusória, mediante "protestos", "manobras" e outros estratagemas adequados, in­discriminadamente, contra pais, educadores, superiores, autori­dades, situações, instituições ou seja lá o que for. Até a se­xualidade figura entre os estratagemas. Esta concepção está ba­seada numa supervalorização do sujeito, em face do qual as características e a significação dos objetos desaparecem por completo. Estes são considerados, no máximo, como portadores de tendências repressivas. Creio não estar equivocado na mi­nha suposição de que a relação amorosa e outros anseios que visam objetos também sejam considerados por Adler como dimensões essenciais. Em sua teoria da neurose, porém, não lhes é atribuído o papel principal, como na de Freud.
Freud vê seu paciente constantemente na dependência de e relacionado com objetos importantes. Pai e mãe exercem um papel fundamental. Todas as influências ou condicionamentos que eventualmente ainda venham a ter importância na vida do paciente remontam, em causalidade direta, a essas potências primordiais. O conceito de transferência, ou, em outras pala­vras, a relação paciente/analista, é a "pièce de résistance" de sua teoria. Sempre se deseja um objeto especificamente quali­ficado, ou então se lhe opõe resistência, e isso invariavelmente de acordo com o modelo da relação com os pais adquirido na primeira infância. O que brota do sujeito é essencialmente um desejo cego de prazer. Mas esse desejo sempre recebe a sua qualidade de objetos específicos. Para Freud, os objetos são de extrema importância e têm a quase exclusividade da força determinante, ao passo que o sujeito se torna surpreen­dentemente insignificante e, na realidade, não é mais do que uma fonte do desejo de prazer ou uma "morada do medo". Como já salientamos, Freud também conhece os "impulsos do eu"; mas esta expressão já basta para indicar que sua idéia do sujeito é diametralmente diversa da dimensão especial que cabe ao sujeito na concepção adleriana.
Sem dúvida, ambos os cientistas vêem o sujeito em rela­ção ao objeto; mas que diferença no modo de ver essa rela­ção! Em Adler a ênfase é posta num sujeito que se afirma e procura manter sua superioridade sobre os objetos, sejam eles quais forem. Em Freud, ao contrário, a ênfase é posta inteiramente nos objetos, que, conforme suas características especiais, são proveitosos ou prejudiciais ao desejo de prazer do sujeito.
Esta disparidade não pode ser outra coisa senão uma dife­rença de temperamento, uma oposição entre dois tipos de espírito humano, num dos quais o efeito determinante provém preponderantemente do sujeito e no outro, do objeto. Uma po­sição mediana, que seria, digamos, a do senso comum, admi­tiria que a atuação humana é condicionada tanto pelo objeto quanto pelo sujeito. Ambos os estudiosos argumentam que sua teoria não pretende ser uma explicação psicológica do homem normal, mas uma teoria da neurose. Sendo assim, Freud de­veria explicar e tratar muitos dos seus casos pelo enfoque de Adler; este, por sua vez, deveria, em outros tantos casos, fazer sérias concessões aos pontos de vista defendidos por seu ex-professor. O que, no entanto, não foi o que se deu, nem com um nem com o outro.
Observando o dilema, eu me pergunto: será que existem pelo menos dois tipos diferentes de pessoas, um dos quais se interessa mais pelo objeto e o outro por si mesmo? E podemos dar-nos por satisfeitos com a explicação de que um deles só vê um lado e o outro só o outro e que por isso os resultados são diametralmente diferentes? Como já dissemos, seria absur­do admitir que o destino faça uma escolha tão sutil dos pa­cientes que cada grupo caia nas mãos do médico que lhe con­vém. Há muito tempo venho percebendo, tanto no que me diz respeito quanto em relação a meus colegas, que tratamos com relativa facilidade de certos casos, ao passo que em outros não há meio de acertar. É de importância capital para o tra­tamento o fato de que se estabeleça ou não uma boa relação entre o médico e o paciente. Caso não se crie um relaciona­mento natural e de confiança dentro de um curto espaço de tempo, é melhor que o paciente escolha outro médico. Tam­bém nunca me envergonhei de recomendar a outro colega um Paciente cujo tipo não se entrosasse com o meu ou me fosse antipático. Isto no próprio interesse do paciente, pois num caso assim estou certo de que o meu trabalho não seria bem feito. Todos temos as nossas limitações pessoais. Principalmente como terapeutas que somos, sempre é bom ter isso em ente. Diferenças pessoais muito grandes ou incompatibilidades geram resistências exageradas e supérfluas, que nem são justificadas. Na realidade, a controvérsia Freud/Adler não passa de um simples paradigma, um caso entre os muitos tipos de atitude possíveis.
Essa questão constituiu minha grande preocupação durante muito tempo. Finalmente, fundamentado em muitas observa­ções e experiências, cheguei a apresentar dois tipos básicos de comportamento ou de atitude, ou seja, a introversão e a extroversão. A primeira atitude, quando normal, é caracterizada por um ser hesitante, reflexivo, retraído, que não se abre com facilidade, que se assusta com os objetos e sempre está um pouco na defensiva, gostando de se proteger por trás do escudo de uma observação desconfiada. A segunda, quando normal, é caracterizada por um ser afável, aparentemente aberto, de boa vontade, que se adapta bem a qualquer situação, se rela­ciona facilmente com as pessoas e, não raro, se lança despreo­cupado e confiante em situações desconhecidas sem levar em conta a eventualidade de certos riscos. É evidente que no pri­meiro caso é o sujeito quem decide e no segundo o objeto.
Naturalmente, esses traços não passam de um esboço ru­dimentar dos dois tipos.1 Empiricamente, essas duas atitudes raramente são observadas em seu estado puro. Mais adiante voltarei ao assunto. Muitas vezes não é fácil determinar o tipo, porque há inúmeras variações e possibilidades de compensa­ção. Além das oscilações individuais, as variações podem ser determinadas pela predominância de uma das funções da cons­ciência, como o pensamento ou o sentimento, o que imprime um caráter especial na atitude básica. As freqüentes compen­sações que o tipo básico apresenta provêm em geral dos ensi­namentos da vida: aprendemos, às vezes depois de muito so­frer, que nem sempre podemos soltar as rédeas do nosso ser. Em outros casos, nos indivíduos neuróticos, por exemplo, mui­tas vezes não se sabe se estamos diante de uma atitude cons­ciente ou inconsciente, uma vez que, devido à dissociação da personalidade, ora aparece uma metade, ora outra, confundindo o nosso julgamento. Por essa mesma razão, é tão difícil con­viver com pessoas neuróticas.
As enormes diferenças entre os tipos, efetivamente existentes (descrevi oito grupos distintos no livro que acabo de citar)2 possibilitaram-me a compreensão das duas teorias controverti­das sobre a neurose como manifestações de tipos antagônicos.
1. O problema dos tipos foi elaborado no meu livro Psychologische Typen, Obras Completas, Vol. 6.
2. Não abrange, evidentemente, todos os tipos existentes. Outros critérios de dife­renciação são: idade, sexo, atividade, emocionalidade e nível de desenvolvimento. Fun­damento a minha caracterização dos tipos nas quatro funções de orientação da cons­ciência: sentimento, pensamento, sensação e intuição. Ver Psychologische Typen, 1950, p. 467ss, Obras Completas, Vol. 6, § 642ss.

Essa constatação redundou na necessidade de nos colocar-mos acima das posições antagônicas, criando uma teoria que fosse justa, não para com uma ou com a outra, mas para com as duas igualmente. Logo, é indispensável fazer a crítica de ambas as teorias apresentadas. Essas teorias, quando apli­cadas a ideais exaltados, atitudes heróicas, dramaticidade ou uma convicção profunda, são apropriadas para, através de um longo processo, trazê-los de volta à realidade banal do dia-a-dia. No entanto, elas não deveriam ser aplicadas a tais coisas, por­que as duas teorias são instrumentos pertencentes ao equipa­mento terapêutico, bisturis impiedosos e afiados usados pelo médico para extrair a parte doente e nociva do corpo do pa­ciente. Nietzsche, com sua crítica destrutiva dos ideais, pre­tendia fazer o mesmo, pois os considerava como excrescências doentias da alma da humanidade (há casos em que isso real­mente é verdade): Nas mãos de um médico habilidoso, de um verdadeiro conhecedor da alma humana, que tenha o "sen­tido das nuanças" (para empregar a expressão de Nietzsche), e aplicadas ao que está realmente doente numa alma, ambas as teorias são corrosivos salutares, quando usadas em dosagens apropriadas a cada caso. Tornam-se prejudiciais e perigo­sas em mãos inaptas para medir e avaliar. São métodos críti­cos e têm em comum com a crítica em geral o fato de serem bons onde algo deve e precisa ser destruído, dissolvido e redu­zido, mas só produzirão dano onde for necessário construir. Poderíamos deixar passar essas teorias sem alardear a res­to, visto que, como venenos medicinais, são confiadas às mãos seguras do médico.
A utilização proveitosa desses corrosivos requer um conhecimento excepcional da alma. É indispensável saber distinguir o doentio e inútil do que tem valor e precisa ser conservado. Isto simplesmente pertence ao rol das coisas mais difíceis. Quem quiser sofrer o impacto de uma leitura acerca dos enganos que podem ser cometidos por um médico "psicologizante" irresponsável que se baseie em preconceitos baratos e Pseudocientíficos, que estude o trabalho de Moebius 3 sobre Nietzsche, ou então os diversos tratados "psiquiátricos" sobre o "caso" de Cristo. Certamente tal pessoa exclamaria conosco: coitado do paciente que for "compreendi­do" dessa maneira!
3. Moebius, Paul Julius, Über das Pathologische bei Nietzsche, 1902.

As duas teorias da neurose não são gerais, mas sim "remédios de uso tópico", dissolventes e redutivos. "Você não passa de..." — só sabem dizer isso. Explicam ao doente que os seus sintomas vêm daqui ou dali, não passam disso ou daquilo. Seria injusto afirmar que a redução não seja eficaz em certos casos. Mas promover a teoria redutiva a uma teoria global da essência, tanto da alma doente como da sadia, simplesmente não tem cabimento. Pois a alma humana, seja doente ou sã, não pode ser esclarecida apenas redutivamente. Não há dúvida de que Eros está sempre presente, sempre e em toda parte. Não há dúvida de que o impulso de poder penetra no que há de mais sublime e mais real na alma humana. Mas a alma não é só isso ou aquilo, ou, se preferirem, isso e aquilo, mas tam­bém tudo o que ela já fez e ainda vai fazer com isso. Uma pessoa só foi compreendida pela metade, quando se sabe a proveniência de tudo o que aconteceu com ela. Se fosse só isso, pouco importaria se já houvesse morrido há muito tempo. Como ser vivo, ela não foi compreendida, porque a vida não é só ontem nem fica explicada quando se reduz o hoje ao ontem. A vida também é amanhã; só compreendemos o hoje se pudermos acrescentá-lo àquilo que foi ontem e ao começo daquilo que será amanhã. Todas as manifestações psicológicas da vida são assim, inclusive os sintomas doentios. Pois os sin­tomas neuróticos não são efeitos de causas passadas, ou seja, da "sexualidade infantil" ou do "impulso de poder infantil", mas também tentativas de uma nova síntese de vida. Tentativas frustradas, não resta dúvida, mas que nem por isso deixam de ser tentativas, com um germe de valor e sentido. São em­briões abortivos devido a condições desfavoráveis de natureza interna e externa.
O leitor perguntará, com certeza: diga-me, pelo amor de Deus, que valor e que sentido pode ter uma neurose, esse fla­gelo inútil e repugnante da humanidade! Ser nervoso — de que serve isso? Ora, provavelmente para as mesmas razões por que Deus criou as moscas e as demais pragas: para que o ho­mem se exercite na virtude da paciência. Por mais tolo que seja esse pensamento do ponto de vista da ciência, ele é sábio do ponto de vista da psicologia. É só substituir "pragas" Por "sintomas nervosos". Até Nietzsche, com seu desmedido des­dém por tolices e banalidades, reconheceu mais de uma vez tudo quanto devia à sua doença. Já vi mais de uma pessoa cuja vida só teve utilidade e sentido graças a uma neurose, que a impedia de cometer todas as asneiras decisivas da vida, obrigando-a a levar uma existência que desenvolvesse seus ger­mes preciosos, que teriam sido sufocados caso a neurose, com mãos de ferro, não a tivesse colocado em seu devido lugar, pois bem, há pessoas cujo sentido e significado da vida jaz no inconsciente, sendo seu consciente só transvios e descami­nhos. Em outras pessoas se dá o contrário; sua neurose tam­bém tem outro significado. Neste caso, uma ampla redução é indicada, mas não no outro.
O leitor admitirá que em certos casos a neurose possa ter um sentido positivo, mas continuará negando que em todos os pequenos casos corriqueiros e banais possa ter uma fina­lidade de tão grande alcance e sentido. Perguntará, por exem­plo, qual o valor da neurose no caso anteriormente descrito de asma e estados histéricos de pavor. Concordo: neste caso, seu valor não é evidente, principalmente quando considerado do ponto de vista de uma teoria redutiva, isto é, do lado som­brio de um desenvolvimento individual.
Como vemos, ambas as teorias de que falamos têm em comum o fato de desvendarem impiedosamente o lado som­brio do homem. São teorias, ou melhor, hipóteses que nos ex­plicam em que consiste o fator que provocou a doença. Logo, tratam não dos valores de uma pessoa, mas dos seus desvalores, que sempre perturbam ao se manifestarem.
Um "valor" é uma possibilidade através da qual a energia pode chegar a desenvolver-se. No entanto, na medida em que um desvalor também é uma possibilidade de desenvolvimento da energia — e que se observa nitidamente na considerável energia inerente às manifestações neuróticas — também pode ser considerado um valor, mas um valor que proporciona ma­nifestações prejudiciais e inúteis de energia. A bem dizer, a energia em si não é boa nem má, nem útil nem prejudicial, mas neutra, posto que tudo depende da forma como a energia é aplicada. A forma é que dá qualidade à energia. Mas, por outro lado, a forma sem a energia também é neutra. Para que se produza um valor verdadeiro, é indispensável que haja ener­gia, de um lado, e, do outro, o valor da forma. Na neurose há energia psíquica 4, sem dúvida, mas numa forma inferior e não aproveitável.
4, Recomendo a leitura do meu livro Über psychische Energetik und das Wesen der Träume, 1948. Obras Completas, Vol. 8.
As concepções das duas teorias redutivas só servem para dissolver essa forma inferior. Neste ponto, agem como corrosivos. Assim, obtemos energia livre, mas neutra. Até hoje predominava a idéia de que essa energia recém-obtida ficava à disposição do consciente do enfermo, podendo ser por ele empregada do modo que lhe aprouvesse. Enquanto se con­siderava a energia como mera força do impulso sexual, fala­va-se em "sublimação" e utilização da mesma. Supunha-se que, com a ajuda da análise, o paciente fosse capaz de sublimá-la, isto é, de usá-la; não para exercer a sexualidade, mas para o exercício de uma arte ou outra atividade qualquer que fosse boa ou útil. Segundo este ponto de vista, o paciente tem a pos­sibilidade de realizar a sublimação das suas forças impulsivas de acordo com a sua vontade e a sua tendência.
Até certo ponto tal opinião tem sua razão de ser, na medida em que o homem tem condições de imprimir uma dire­triz específica e determinada à sua vida. Sabemos, no entanto, que não existe previsão humana ou filosofia de vida capaz de predeterminar o rumo da nossa vida, a não ser a curto prazo. Isto é válido apenas para o tipo de vida "comum", não para o tipo "heróico". Este último modo de vida também existe, mas é incontestavelmente mais raro do que o primeiro. E a ele não se aplica a afirmação que acabamos de fazer a res­peito de se imprimir a curto prazo um rumo definido à vida. O rumo da vida heróica é incondicional: são as decisões do destino que a orientam; pode ser que a resolução de seguir uma determinada direção se mantenha inabalável até o amargo fim. Mas, em geral, o médico só trata de pessoas humanas; raramente, de heróis voluntários. Nos casos de heroísmo, trata-se em geral de um suposto heroísmo, que não passa de obsti­nação infantil contra um destino mais forte, ou então de uma atitude presunçosa para encobrir um sentimento de inferiori­dade. No poderoso dia-a-dia há infelizmente pouco lugar para coisas fora dos padrões que sejam sadias. Há pouco lugar para o heroísmo ostensivo. Não que o desafio do heroísmo nunca bata à nossa porta. Muito pelo contrário! Enfrentar a vida cotidiana, com todas as suas exigências banais de dedicação, paciência, perseverança e sacrifícios, humildemente, sem visar o aplauso, sem grandes gestos heróicos — este é o nosso he­roísmo cotidiano, invisível para os outros. Maçantes, enfado­nhas exigências, que, quando não acolhidas, produzem neurose. Para escapar a elas, muitos já ousaram tomar a grande decisão da sua vida e levá-la a cabo sem se importar com a opinião alheia. Diante de um destino assim, só nos resta inclinarmo-nos. Mas, como dissemos, esses casos são raros; os outros constituem a grande maioria. O rumo dessas vidas não obedece a uma linha simples e bem traçada. O destino abre-se diante delas, confuso e com uma profusão de possibilidades. E no entanto só uma dessas possibilidades é a sua, o caminho certo. Quem se atreveria — por mais que conhecesse seu pró­prio caráter — a determinar de antemão essa única via possí­vel? Com força de vontade pode-se conseguir muita coisa, não resta a menor dúvida. Mas, considerando o destino de certas personalidades dotadas de grande força de vontade, é um erro fundamental querer submeter seu próprio destino à sua von­tade, a qualquer preço. Nossa vontade é uma função dirigida pela reflexão; logo, ela depende da qualidade da nossa refle­xão. A reflexão — a verdadeira reflexão — tem que ser racional, isto é, sensata. Mas já foi provado, ou será possível provar algum dia, que vida e destino concordam com a nossa razão humana ou são racionais?/Pelo contrário, temos base para sus­peitar que são irracionais ou, em última análise, que têm um fundamento que transcende a razão humana. A irracionalidade dos acontecimentos revela-se no que chamamos de acaso. Temos que negá-lo, evidentemente, porque não podemos pensar "a priori" em processo algum que não seja causal e necessaria­mente condicionado; logo, não pode ser também casual.5 Mas na prática o acaso sempre existe; aliás, de uma forma tão insistente que poderíamos tranqüilamente dispensar a nossa filosofia causal. A plenitude da vida tem normas e não as tem, é racional e irracional, por isso a razão e a vontade fundada na razão só têm validade em pequenos espaços da vida. Po­demos estar certos de uma coisa: quanto mais prolongarmos o rumo escolhido pela razão, tanto mais excluiremos a possi­bilidade de viver a vida irracional, que, no entanto, tem o mesmo direito de ser vivida. O fato de o homem ter chegado à condição de imprimir rumo à vida foi de inegável utilidade. Podemos afirmar, e com toda razão, que a maior vitória da sanidade foi a conquista da racionalidade. No entanto, não queremos dizer que isso deva continuar ou continue sempre assim, aconteça o que acontecer.
5. A física moderna pois fim a essa causalidade estrita. Só ficou a "probabilidade estatística”. Em 1916 eu já apontara a condicionalidade da interpretação causal na psicologia, o que na época, foi mal recebido. Ver Collected Papers on Analytical Psychology, 1920, 2ª edição, p. X e XV.

A terrível catástrofe da I Guerra Mundial veio frustrar por completo o mais otimista dos racionalistas culturais. Em 1913, Ostwald escrevia as se­guintes palavras: "O mundo inteiro concorda que o estado atual de paz armada é insustentável e que pouco a pouco a situação se tornará impossível. Está exigindo sacrifícios imensos de cada nação, que ultrapassam de longe as despesas destinadas a fins culturais e não acedem a quaisquer valores positivos. Se a humanidade encontrasse meios e caminhos de eliminar esses preparativos de guerras que nunca sobrevêm, essa imobilização de considerável parcela da nação na faixa de idade mais vigorosa e produtiva para fins de treinamento de guerra e os inú­meros prejuízos decorrentes do atual estado de coisas, seria possível obter uma economia de energias de tais proporções que, a partir daí, promoveria um florescimento imprevisível do desenvolvimento cultural. Pois a guerra é semelhante à luta pessoal para solucionar as contradições de vontades diferen­tes: o mais antigo de todos os recursos possíveis e, por isso mesmo, o mais inútil, o que acarreta o mais grave desperdício de energia. A total eliminação tanto da guerra potencial como da guerra real é inteiramente conforme ao espírito do impe­rativo energético, e é um dos mais importantes desafios à cul­tura dos nossos dias".6
6. Wilhelm Ostwald, Die Philosophie der Werte, 1913, p. 312s.

Mas a irracionalidade do destino não quis o mesmo que a racionalidade dos pensadores bem intencionados. Quis muito mais do que a simples utilização dos soldados e das armas armazenadas: quis uma destruição monstruosa, tresloucada, uma chacina em massa, sem precedentes, para que a humani­dade eventualmente entendesse que a intenção racional só consegue dominar um dos lados do destino.
O que se diz da humanidade em geral também se aplica a cada indivíduo em particular, pois a humanidade é formada por um conjunto de indivíduos. A psicologia da humanidade corresponde à psicologia individual. A Guerra Mundial foi um terrível ajuste de contas com a intencionalidade racional da civilização. O que chamamos de "vontade" no indivíduo chama-se "imperialismo" nas nações, pois a vontade é a expressão do poder sobre o destino, isto é, a exclusão do acaso. Civilização é sublimação racional e "utilitária" de energias livres, produ­zida voluntária e intencionalmente. No indivíduo dá-se o mes­mo. Da mesma forma que a idéia de uma organização da cultura universal sofreu uma cruel advertência com esta guerra, sim o indivíduo também precisa aprender várias vezes em a vida que as chamadas energias "disponíveis" não são dis­poníveis a seu bel-prazer.
Nos EUA um empresário de uns 45 anos foi consultar-me. Seu caso ilustra muito bem o que acabei de dizer. Tratava-se de um típico "self-made man" americano, que tinha começado do nada e subira na vida por esforço próprio. Tinha sido muito bem sucedido em seus empreendimentos e fundara uma em­presa gigantesca. Pouco a pouco conseguira organizá-la de tal forma que lhe foi possível afastar-se de sua direção. Dois anos antes de me ver, havia se afastado da firma. Até então vivera exclusivamente para os negócios, concentrando nisso todas as suas energias, com a incrível intensidade e unilateralidade ca­racterísticas de um empresário americano bem sucedido. Ha­via comprado uma fazenda maravilhosa, onde tencionava "vi­ver". Para ele "viver" significava cavalos, automóveis, golfe, tênis, festas, etc. Mas fizera a conta sem o dono do restau­rante. A energia em "disponibilidade" nada tinha a ver com essas perspectivas convidativas: encasquetou com algo bem diferente. Ao cabo de algumas semanas dessa vida nababesca, tão ardentemente desejada, começou a perscrutar obsessiva­mente estranhas e vagas sensações do corpo; algumas sema­nas mais bastaram para precipitá-lo numa hipocondria in­crível. Teve um colapso nervoso total. O homem sadio, que tinha uma força física incomum e uma extraordinária energia, transformou-se numa criança chorona. E com isso acabou-se toda a sua glória. Tinha um medo atrás do outro e as obses­sões hipocondríacas torturavam-no mortalmente. Foi consultar um famoso especialista, que logo reconheceu que o que faltava ao homem era trabalho. O paciente concordou e retomou seu lugar na empresa. Mas, para seu grande desespero, não conse­guiu mais sentir nenhum interesse pelos negócios. Nada ajudou: nem paciência, nem resolução. Por mais que fizesse, não conseguiu canalizar a energia de volta para os negócios. Como era de esperar, o seu estado agravou-se mais ainda. Tudo o antes era energia viva e produtiva, voltou-se contra ele, lenta e destrutivamente. Houve como que uma revolta de gênio criador contra ele mesmo. Assim como criara antes grandes organizações no mundo, agora seu demônio criava re­atados sistemas e mecanismos hipocondríacos que o arrasavam. Quando o vi, já era uma ruína moral, sem esperanças.
Em todo caso, tentei fazê-lo ver que é possível recolher a fabulosa energia como a que empregara no negócio, mas que a questão era: para onde canalizá-la? Pode acontecer que nem mesmo os mais belos cavalos, os carros mais velozes e as festas mais divertidas sejam um atrativo para a energia. No entanto, era razoável pensar que uma pessoa que dedicara uma vida inteira a um trabalho sério tivesse um direito na­tural aos prazeres da vida. Sim, se o destino se comportasse de acordo com o bom senso humano, é assim que deveria ser: primeiro, o trabalho; depois, o descanso bem merecido. Mas na realidade as coisas que acontecem são irracionais. A ener­gia tem o inconveniente de exigir um fluxo adequado para se produzir; caso contrário, fica represada e torna-se destrutiva. Regride a situações anteriores: no presente caso, à lembrança de uma infecção sifilítica que contraíra 25 anos antes. Mas isto também não passava de uma das etapas no caminho de reviver as reminiscências infantis, que nesse meio tempo se haviam praticamente esvaído. A sua primitiva relação com a mãe é que orientou sua sintomatologia. Tratava-se de um "me­canismo" para despertar a atenção e o interesse da mãe (há muito falecida). E esta não foi a última etapa, pois a meta era obrigá-lo a voltar ao próprio corpo, depois de ter vivido só com a cabeça desde a juventude. Um dos lados do seu ser se diferenciara, deixando o outro retido num estado de torpor corporal. Precisava desse outro lado para poder "viver". A "depressão" hipocondríaca forçava-o, por assim dizer, a tomar conhecimento do corpo, que sempre havia ignorado. Se ele tivesse tido condições de entender o sentido da depressão e da ilusão hipocondríaca e de conscientizar-se das fantasias re­sultantes de um tal estado, teria sido a salvação. Naturalmente, não fui correspondido no amor pelos meus argumentos, como era de se esperar. O caso estava avançado demais para que se pudesse contar com uma perspectiva de cura. Só lhe res­tava continuar o tratamento até a morte.
Este caso mostra claramente que não está em nossas mãos encaminhar uma energia "disponível", à vontade, para um obje­to de nossa escolha. Com as energias aparentemente disponí­veis, obtidas após a destruição das suas formas inaproveitáveis pelos corrosivos da redução, dá-se em geral exatamente o mes­mo. Como já dissemos, no melhor dos casos essa energia pode ser utilizada da forma que a vontade determina, mas só por um curto espaço de tempo. Quase sempre ela se recusa a seguir as possibilidades racionalmente propostas pelo tempo fora. A energia psicológica tem o capricho de querer satis­fazer suas próprias exigências. Por maior que seja a quanti­dade de energia existente, não podemos aproveitá-la enquanto não conseguirmos estabelecer um fluxo.
O problema do fluxo é uma questão eminentemente prá­tica que se coloca na maioria das análises. Por exemplo, no caso propício de haver um encaminhamento da energia dis­ponível, a chamada libido 7, para um objeto razoável, a nossa tendência é acreditar que a transformação foi operada por um esforço consciente da vontade. Mas nos enganamos redon­damente. Nem com o maior esforço do mundo conseguiríamos isso, se já não houvesse simultaneamente um fluxo natural no mesmo sentido. A importância do fluxo é constatada quan­do, apesar dos mais desesperados esforços e de o objeto esco­lhido e a forma desejada serem os mais convincentes e sen­satos possíveis, não se consegue operar a transformação, pro­duzindo apenas uma nova repressão.
7. O Leitor deve ter percebido, pelo que ficou dito até agora, que eu utilizo o conceito da libido introduzido por Freud (e que se adapta muita bem à prática), num sentido mais amplo que o seu. Libido significa energia psíquica, para mim, ou o mesmo que intensidade energética de conteúdos psíquicos. Freud identifica a libido com Eros, concordando com o seu pressuposto teórico, e quer vê-la distinta de uma energia psíquica geral. Diz o seguinte: Gesammelte Schriften, Vol. 5, p. 92: "Estabelecemos o conceito da libido como sendo uma força quantitativamente variável, que mediria transformações no campo da excitação sexual. Diferenciamos Em t da energia que deve estar na origem dos processos psíquicos em geral.."
Em outra parte Freud menciona que lhe falta "um termo análogo a libido" para o impulso de destruição. Como o referido impulso de destruição também é um fenômeno energético, parece-me mais simples definir a libido como um conceito geral de intensidades psíquicas, ou simplesmente como energia psíquica. Ver Symbole der Wandlung, 1952, p. 218ss. Obras Completas, Vol. 5; e Über psychische Energetik und das Wesen der Träume, 1948, p. 7ss, Obras Completas, Vol. 8

Estou mais do que convencido de que o caminho da vida só continua onde está o fluxo natural. Mas nenhuma energia é produzida- onde não houver tensão entre contrários; por isso, é preciso encontrar o oposto da atitude consciente. É interes­sante verificar como essa compensação dos opostos também teve sua função na história da teoria da neurose: a teoria de Freud representa Eros; a de Adler, o poder. Pela lógica, o con­trário do amor é o ódio; o contrário de Eros, Phobos (o medo). Mas, psicologicamente, é a vontade de poder. Onde im­pera o amor, não existe vontade de poder; e onde o poder tem precedência, aí falta o amor. Um é a sombra do outro. Quem se encontra do ponto de vista de Eros procura o con­trário, que o compensa, na vontade de poder. Mas quem põe a tônica no poder, compensa-o com Eros. Visto do ponto de vista unilateral da atitude consciente, a sombra é uma parte inferior da personalidade. Por isso, é reprimida; e devido a uma intensa resistência. Mas o que é reprimido tem que se tornar consciente para que se produza a tensão entre os contrários, sem o que a continuação do movimento é impossível. A cons­ciência está em cima, digamos assim, e a sombra embaixo, e como o que está em cima sempre tende para baixo, e o quente para o frio, assim todo consciente procura, talvez sem per­ceber, o seu oposto inconsciente, sem o qual está condenado à estagnação, à obstrução ou à petrificação. É no oposto que se acende a chama da vida.
Foram concessões à lógica intelectual, por um lado, e ao preconceito psicológico, por outro, que levaram Freud a qua­lificar o contrário de Eros como impulso de destruição e morte. Ora, antes de mais nada, Eros não é sinônimo de vida. Mas quem pensa assim evidentemente acha que o seu con­trário é a morte. Em segundo lugar, o oposto do seu princípio supremo é, para todo o mundo, aparentemente, o princípio de destruição, a morte, o mal pura e simplesmente. A pessoa não o julga capaz de uma força positiva de vida, por isso o teme e evita.
Como vimos, existem muitos princípios supremos de vida e de filosofia, com suas respectivas formas de contrários com­pensatórios. Já salientei dois tipos de contrários, que, a meu ver, são os principais. Designei-os como tipos introvertidos e extrovertidos. William James 8 já havia notado a existência des­ses dois tipos entre os pensadores. Classificara-os em "tender-minded" e "tough-minded". Ostwald 9 também propôs para os grandes sábios uma distinção análoga: o tipo clássico e o tipo romântico. Escolhi esses dois nomes entre muitos outros só para mostrar que não me encontro isolado nesta minha idéia dos tipos. Provei, com minhas pesquisas históricas, que um grande número de importantes questões e conflitos na história do espírito repousam na oposição desses dois tipos. A mais significativa dessas questões é a oposição entre nominalismo e realismo, que começou com a divergência entre as escolas pla­tônica e megárica e foi herdada pela filosofia escolástica. Abe­lardo teve então o grande mérito de, pelo menos, tentar uni­ficar os pontos de vista opostos no conceitualismo.10 Essa con­trovérsia continuou até nossos dias, manifestando-se na oposição entre idealismo e materialismo.
8. Pragmatism, 1911.
9. Grosse Münner, 1910.
10. Psychologische Typen, 1950, p. 64ss, Obras Completas, Vol. 6 § 65ss.

Como na história do espí­rito em geral, assim também cada indivíduo participa por sua vez dessa oposição entre os tipos. Uma pesquisa mais cuida­dosa revelou que os casamentos se fazem de preferência entre esses dois tipos, inconscientemente, para uma complementação recíproca. A natureza reflexiva do introvertido leva-o a refletir ou a meditar sempre antes de agir. Sua atuação é, evidente­mente, mais lenta. Pela timidez e desconfiança diante dos obje­tos é, evidentemente, mais lenta. Pela timidez e desconfiança diante dos objetos, é levado a hesitar e sempre encontra difi­culdades em adaptar-se ao mundo exterior. Inversamente, o extrovertido tem um relacionamento positivo com as coisas. Ele é, por assim dizer, atraído por elas. É tentado por situa­ções novas e desconhecidas. Chega a se lançar de corpo e alma em coisas novas, só para conhecê-las. Em geral, age primeiro e só depois reflete. Sua ação é rápida, sem hesitações ou escrúpulos. Ambos os tipos são como que criados para uma simbiose. Um encarrega-se da reflexão; o outro, da iniciativa e da ação prática. Quando se casam, esses dois tipos podem formar um casal ideal. Enquanto estão totalmente absorvidos com a adaptação às inúmeras necessidades da vida, combinam maravilhosamente bem. Mas depois que o homem ganhou di­nheiro suficiente ou quando uma herança importante lhes cai do céu e faz cessar a necessidade externa, eles têm tempo para se preocupar um com o outro. Antes disso, voltavam as costas um para o outro e lutavam pela sobrevivência. Agora, porém, voltam-se um para o outro, querem entender-se e des­cobrem que nunca houve entendimento entre eles. Cada qual fala uma língua diferente. Assim se instala a briga entre os dois tipos. Briga violenta, cheia de veneno e de acusações de­preciativas e recíprocas, mesmo quando recônditas e inconfessas; pois o valor de um é desvalor do outro. Seria razoável Pensar que a consciência do próprio valor poderia bastar para conhecer tranqüilamente o valor do outro, tornando supérflua qualquer disputa. Vi grande número de pessoas argumen­to assim, sem no entanto chegar a qualquer resultado satisfatório. Quando se trata de pessoas normais, esse tempo transição é mais ou menos bem superado. Normal é a pessoa que simplesmente consegue viver, quaisquer que sejam as circunstâncias, contanto que lhe sejam garantidas as condições mínimas de vida. Mas muitos não o conseguem; por isso não existem muitas pessoas normais. O que comumente entendemos por "homem normal" é, na realidade, o homem ideal, portador de uma feliz mistura de caráter — o que é raríssimo. A grande maioria das pessoas mais ou menos dife­renciadas requer condições de vida que lhes garantam algo mais do que simplesmente comer e dormir com relativa segu­rança. Para essas, o fim de uma relação simbiótica representa um abalo profundo.
Não é fácil entender por que deve ser assim. Considerando que nenhum ser humano é exclusivamente introvertido nem ex­clusivamente extrovertido, ambas as atitudes existem dentro dele, mas só uma delas foi desenvolvida como função de adap­tação; logo, podemos supor que a extroversão cochila no fundo do introvertido, como uma larva, e vice-versa. Pois bem, é exa­tamente isso o que acontece. O introvertido tem em si uma parte extrovertida, inconsciente, porque os olhos de sua cons­ciência estão sempre voltados para o sujeito. Aliás, ele vê o objeto, mas tem imagens errôneas ou inibitórias a respeito, de modo que sempre se mantém o mais distante possível, como se o objeto fosse algo poderoso e perigoso. Quero esclarecer, através de um exemplo, o que acabo de dizer: dois rapazes caminham juntos pelo campo. Chegam a um castelo maravi­lhoso. Ambos gostariam de ver o castelo por dentro. O intro­vertido diz: "Gostaria de saber como é por dentro". O extro­vertido, por sua vez, diz: "Vamos entrar"; e vai entrando pelo portão. O introvertido o detém: "Talvez seja proibida a entra­da", imaginando vagamente uma série de represálias, como vio­lências policiais, multas, cachorros brabos, etc. Ao que o outro replica: "Podemos perguntar, na certa l vão nos deixar entrar", imaginando velhos porteiros afáveis, castelões hospitaleiros e possíveis aventuras românticas. Graças ao otimismo do extrover­tido, conseguem realmente entrar no castelo. Mas agora começa a peripécia. O castelo foi reformado por dentro. Só tem umas poucas salas, com uma coleção de velhos manuscritos. Por acaso, essa é a paixão do rapaz introvertido. Mal chega a vê-los, fica como que transformado, absorto na contemplação dos te­souros, suas palavras exprimindo entusiasmo. Envolve o guar­da numa conversa, para obter mais informações. Como as res­postas do guarda não o satisfazem, ele pergunta pelo conser­vador e sai imediatamente à sua procura, para continuar a investigação. Mas, enquanto isso, a animação do extrovertido vai diminuindo cada vez mais; vai ficando de cara comprida e começa a bocejar. Nada de porteiros afáveis, nada de hospitalidade cavalheiresca, nem sombra de aventuras românticas: apenas um castelo reformado. Não precisava ter saído de casa para ver manuscritos. Enquanto cresce o entusiasmo de um, vai acabando a disposição do outro; o castelo o aborrece, os manuscritos cheiram a biblioteca, a biblioteca faz com que se lembre da faculdade, a faculdade é associada a estudo, exames: uma ameaça. Pouco a pouco, um véu sombrio vai descendo sobre o castelo, antes tão interessante e atraente. O objeto fica negativo. "Não é formidável", exclama o introvertido, "desco­brir essa coleção maravilhosa assim por acaso?" "Eu estou achando isso aqui muito sem graça", responde o outro, sem esconder o seu mau humor. Isso irrita o primeiro, que resolve para si mesmo: "Nunca mais vou viajar com esse sujeito!" O extrovertido, por sua vez, fica irritado com a irritação do com­panheiro, pensa que sempre achara o outro um perfeito egoísta, sem a menor consideração pelos outros. "Onde já se viu des­perdiçar a linda primavera lá fora! Poderíamos estar aprovei­tando! E tudo por causa dessa curiosidade egoísta!"
Que foi que aconteceu? Ambos caminham juntos em alegre simbiose, até chegarem ao castelo fatal. Lá dizia o introvertido "pré-meditativo" (prometéico): "Poderíamos vê-lo por dentro". O extrovertido ativo e "pós-meditativo" (epimetéico) abriu o caminho.11 Nessa altura, o tipo se inverte: o introvertido, que hesitava em entrar, não quer mais sair e o extrovertido amal­diçoa o momento em que entrou no castelo. O primeiro fica fascinado pelo objeto; o segundo, por seus pensamentos nega­tivos. No instante em que o primeiro avistou os manuscritos, já estava perdido. Sua timidez desapareceu, o objeto tomou posse dele: entregou-se documente. Em compensação, o segun­do sentiu uma resistência crescente em relação ao objeto e, finalmente, fez-se cativo do seu sujeito mal humorado. O pri­meiro tornou-se extrovertido; o segundo, introvertido. Enquanto os dois caminhavam juntos na mais alegre harmonia, um não perturbava o outro, porque cada qual estava "na sua", Ruralmente. Eram positivos um para o outro, porque as suas atitudes se complementavam. Mas complementavam-se porque a atitude de um sempre compreendia a do outro. A rápida conversa que tiveram é ilustrativa: ambos querem entrar no castelo. a dúvida do introvertido quanto à permissão para entrar também serve para o outro. A iniciativa tomada pelo extrovertido também é de utilidade para o introvertido. A atitude de um também inclui o outro, e isso é quase sempre assim, quando um indivíduo está na atitude que lhe é natural, porque essa atitude se adapta coletivamente, por assim dizer. Com a atitude do introvertido também se dá o mesmo, apesar de que ela sempre parte do sujeito; vai sempre só do sujeito para o objeto, enquanto que a atitude do extrovertido vai do objeto para o sujeito.
11. Ver meus comentários a respeito de Prometeu e Epimeteu de Spitteler, em Psychologische Typen, 1950, p. 227ss, Obras Completas, Vol. 6 § 261ss.

Mas, assim como no introvertido o objeto sobrepuja o sujeito, atraindo-o, sua atitude perde o caráter social. Esquece-se da presença do amigo; não o inclui mais. Submerge no objeto e não vê quanto o amigo se aborrece. E vice-versa: o extrover­tido perde a consideração para com o outro no momento em que sua expectativa não é satisfeita, retraindo-se em suas idéias e humores subjetivos.
Assim sendo, o acontecido pode ser formulado da seguinte maneira: por influência do objeto, apareceu uma extroversão inferior no introvertido, ao passo que uma introversão inferior substituiu a atitude social do extrovertido. Dessa forma, volta­mos à frase que nos serviu de ponto de partida: o valor de um é o desvalor do outro.
Acontecimentos positivos ou negativos podem trazer à tona a função contrária inferior. Sobrevindo isso, manifesta-se a hiper sensibilidade. A hiper sensibilidade é sintoma da existência de uma inferioridade. Assim se estabelecem as bases psicológi­cas da desunião e da incompreensão, não só entre duas pes­soas, como também da cisão dentro de si mesmo. Aliás, a na­tureza da função inferior 12 é caracterizada pela autonomia; é independente, ela nos acomete, fascina e enleia, a ponto de deixarmos de ser donos de nós mesmos e não nos distinguir­mos mais exatamente dos outros.
12. Ver Psychologische Typen, 1950, p. 615s., Obras Completas, Vol. 6 § 261ss.

Mesmo assim, é necessário para o desenvolvimento do caráter que esse outro lado, justamente essa função inferior, também possa manifestar-se. Não podemos permitir que outra pessoa se encarregue permanentemente, simbioticamente, de um dos lados da nossa personalidade. De um momento para outro podemos precisar da outra função, como no exemplo acima, e não estaríamos preparados. As conseqüências podem ser gra­víssimas: o extrovertido perde a sua relação indispensável cora os objetos e o introvertido, a sua, com o sujeito. Por outro lado, é indispensável que a ação do introvertido não seja cons­tantemente inibida por preocupações e hesitações e que o ex­trovertido possa meditar sobre si mesmo, sem prejudicar as suas relações.
Vê-se por aí que a extroversão e a introversão são duas atitudes naturais, antagônicas entre si, ou movimentos dirigi­dos, que já foram definidos por Goethe como diástole e sístole. Em sucessão harmônica, deveriam formar o ritmo da vida. Al­cançar esse ritmo harmônico supõe uma suprema arte de viver. Ou ser totalmente inconsciente, para que nenhum ato cons­ciente venha perturbar a lei natural, ou ser tão altamente cons­ciente, a ponto de ser capaz de querer e poder executar tam­bém os movimentos opostos. Como não podemos retroceder para a inconsciência animal, só nos resta avançar no difícil caminho evolutivo em direção a uma consciência maior. É ver­dade que essa consciência — a que permite viver o grande Sim e o grande Não da vida em liberdade e intenção — é decidi­damente um ideal sobre-humano. (Mesmo assim, não deixa de ser uma meta final. O estágio espiritual do nosso tempo con­sente apenas em querer conscientemente o Sim e em, pelo me­nos, suportar o Não. Conseguir isso já é uma enorme conquista.
O problema dos opostos como princípio inerente à natu­reza humana constitui uma etapa a mais no desenvolvimento do nosso processo de autoconhecimento. Em geral, é um pro­blema da idade madura. O tratamento prático de um paciente nunca vai começar por este problema — principalmente o de um jovem. Comumente, as neuroses juvenis são produzidas por um choque entre as forças da realidade e uma atitude infantil insuficiente, caracterizada, em sua causa, por uma dependência anormal de pais reais ou imaginários e, em sua meta, por uma criatividade deficiente, isto é, por propósitos e ambições adequados. Neste caso as reduções de Freud e Adler são per­feitamente indicadas. Mas existem muitas neuroses que só aparecem na idade madura ou que se agravam de tal forma que os pacientes se tornam incapacitados para o trabalho. Nestes casos é fácil comprovar que já existia em sua juventude uma excessiva dependência dos pais, bem como uma série de ilusões infantis, sem que isso impedisse a escolha de uma profissão, seu exercício bem sucedido e o casamento, um casamento levado aos trancos e barrancos, até que na idade madura a atitude mantida até então entra em colapso. Obviamente, num caso desses, a conscientização das fantasias infantis, da dependência dos pais, etc, de nada adianta, embora seja uma parte necessária do processo, e geralmente não tem efeitos prejudi­ciais. No fundo, a terapia só começa realmente quando o pa­ciente vê que quem lhe barra o caminho não é mais pai e mãe, mas sim ele próprio, isto é, uma parte inconsciente de sua per­sonalidade que continua desempenhando o papel de pai e mãe. Por maior que seja a utilidade deste conhecimento, ele ainda é negativo, pois diz apenas: "Reconheço que não são meus pais que estão contra mim, mas eu mesmo". Mas quem é que se opõe nele? Que parte misteriosa de sua personalidade é essa que se escondeu por detrás das imagens de pai e mãe e que por tanto tempo o fez acreditar que a origem do seu mal o atacou de fora? Esta parte é o oposto da sua atitude cons­ciente, não lhe dará sossego e o perturbará até que seja aceita. Não há dúvida de que nos jovens libertar-se do passado já é suficiente; porque ainda têm um futuro promissor e cheio de possibilidades pela frente. Basta soltar umas amarras; o ím­peto da vida fará o resto. Mas o problema é diferente para as pessoas que já deixaram boa parte da vida para trás, a quem o futuro não acena mais com fabulosas promessas, que nada mais esperam da vida senão os velhos e habituais deveres e os prazeres duvidosos da velhice.
O jovem que consegue livrar-se do passado vai transferindo as imagens dos pais a figuras que os substituam mais adequa­damente: o sentimento de apego à mãe passa para a mulher, e a autoridade do pai, a professores e superiores que merecem seu respeito, ou então a instituições. Não é uma solução fun­damental, mas um caminho prático, que também é percorrido pela pessoa normal, inconscientemente e, por isso mesmo, sem inibições ou resistências consideráveis.
Mas o problema do adulto, que já completou esse trecho do caminho com maior ou menor dificuldade, é diferente. Pro­curou a mãe na mulher, o pai no marido, e encontrou-os. Hon­rou antepassados e instituições. Por sua vez, tornou-se pai e mãe e talvez já tenha ultrapassado esta fase. De repente viu que o que antes significava para ele progresso e satisfação não passa de engodo, restos de ilusão infantil. Olha agora para tudo isso com um misto de desencanto e inveja, porque à sua frente só se descortina a perspectiva da velhice, o fim de todas as ilusões. Não há mais lugar para pai ou mãe. Todas as ilusões que projetou no mundo e nas coisas retornam a ele, pouco a pouco, cansadas, desgastadas. A energia de todas essas relações lhe é restituída e entregue ao inconsciente, onde vivifica tudo quanto até então deixara de desenvolver.
Os impulsos, antes acorrentados na neurose, quando liber­tos, enchem o jovem de brio e esperança, dando-lhe a possibi­lidade de abrir-se mais para a vida. Na segunda metade da vida o desenvolvimento da função dos contrários, adormecida no inconsciente, significa renovação de vida. No entanto, este de­senvolvimento não se faz mais através da solução de ligações infantis, da destruição de ilusões infantis e da transferência das imagens antigas para novas figuras, mas passa pelo pro­blema dos contrários.
O princípio dos opostos já está, naturalmente, na base do espírito jovem. Qualquer teoria psicológica sobre a psique in­fantil deveria levar em conta esse dado da realidade. Os pontos de vista de Freud e Adler, portanto, só são contraditórios quan­do pretendem valer como teorias globais. Mas, na medida em que se contentarem com o título de técnicas auxiliares, já não entram em contradição nem se excluem mutuamente. A teoria psicológica que quiser ser mais do que simples técnica auxiliar tem que basear-se no princípio dos contrários, pois sem ele só reconstruiria psiques neuróticas desequilibradas. Não há equilíbrio nem sistema de auto-regulação sem oposição. E a psique é um sistema de auto-regulação.
Retomando o fio que deixamos para trás, podemos dizer que agora ficou esclarecido por que a neurose contém justa­mente os valores que faltam ao indivíduo. E também podemos voltar ao caso daquela jovem senhora e a ele aplicar os conhe­cimentos adquiridos. Suponhamos que essa doente seja "ana­lisada". No decorrer do tratamento vai percebendo os pensa­mentos inconscientes encobertos pelos sintomas. Vai recupe­rando, assim, a energia inconsciente que era toda a força dos sintomas. Coloca-se então a questão prática: o que vai acontecer com a energia disponível? De acordo com o tipo psicológico da doente, seria razoável transferir novamente essa energia para um objeto tal como uma atividade filantrópica ou outra ocupação de utilidade. Este caminho é a exceção. Só é possível a pessoas dotadas de energia especial, capazes de doação total, ou a pessoas com disposição natural para atividades desse tipo. Na maioria dos casos, porém, não é o que acontece. É preciso não esquecer que a libido (energia psíquica) já possui o seu objeto no inconsciente — nesse caso, o rapaz italiano ou um ser humano real que o substitua. Assim sendo, por mais desejável que seja uma tal sublimação, ela é evidente­mente impossível. Pois em geral o objeto real oferece um fluxo melhor à energia do que uma atividade ética, por mais bela que seja. Infelizmente, há muita gente falando do homem, mas sempre do homem ideal, de como seria bom que ele fosse, mas nunca do homem tal como ele é na realidade. Mas o mé­dico sempre lida com o homem real, que vai teimar em con­tinuar o mesmo, até que sua realidade seja inteiramente aceita. A educação só pode ser feita a partir da realidade nua, não de uma imagem real deturpada.
Infelizmente, em geral, o rumo a ser tomado pela "energia disponível" não pode ser indicado pela nossa vontade. Ela se­gue o seu fluxo. Aliás, já o tinha encontrado antes de estar completamente desligada da sua forma inaproveitável, porque descobrimos que as fantasias da paciente, que antes giravam em torno do italiano, foram transferidas para o médico.13 Por isso o próprio médico tornou-se o objeto da libido inconsciente. Caso a doente se recuse terminantemente a reconhecer a trans­ferência 14, ou caso o médico não compreenda o fenômeno ou o entenda mal, aparecerão resistências violentas que vão im­possibilitar qualquer relação com o médico. Os doentes não voltam mais, procuram outro médico ou então uma pessoa que os entenda, ou ainda, quando desistem de procurar, ficam ato­lados no problema.
13. Freud introduziu o conceito de transferência para definir as projeções de con­teúdos inconscientes.
14. Contrariamente à opinião de alguns, não estou convencido de que a "transferência para o médico" seja um fenômeno constante e indispensável ao bom êxito da terapia. Transferência é projeção, e a projeção está ou não presente. Necessária ela não é. Em hipótese alguma, pode ser "forjada"; pois, por definição, ela nasce de motivações inconscientes. O médico pode ser a pessoa indicada para a projeção, ou não. Nada nos faz afirmar que ele corresponde necessariamente ao fluxo natural da libido do cliente; pois é bem possível que este último tenha vagamente em vista um objeto de projeção bem mais importante. Às vezes, a não-projeção no médico pode até facilitar consideravelmente a terapia, pois, neste caso, os valores pessoais reais passam a ocupar mais nitidamente o primeiro plano.

Mas se a transferência se der e for aceita, então vai-se en­contrar não só uma forma natural de substituir a antiga forma, mas também uma possibilidade de dar vazão ao processo ener­gético relativamente isento de conflitos. Logo, quando se per­mite que a libido siga o seu curso natural, ela encontrará por si só o caminho para o objeto que lhe é destinado. Quando isso não acontece é porque a vontade rebelou-se contra as leis da natureza ou porque houve interferências prejudiciais.Na transferência primeiramente são projetadas fantasias infantis de toda espécie e estas têm que ser corroídas, ou me­lhor, dissolvidas pela redução. A isso deu-se o nome de solução da transferência. Dessa maneira também se liberta a energia da sua primitiva forma inaproveitável, e mais uma vez nos encontramos diante do problema da energia disponível. Con­fiemos de novo na natureza, que — antes de o procurarmos — já escolheu o objeto capaz de proporcionar-lhe o fluxo adequado.