quinta-feira, 19 de julho de 2007

O problema dos tipos de atitude

COMO as duas teorias descritas nos capítulos anteriores são inconciliáveis, é preciso encontrar um ponto de vista acima delas, em que a unificação seja possível.
Não podemos conde­nar uma simplesmente para favorecer a outra, por mais cô­moda que seja essa solução; porque, quando as duas teorias são examinadas sem parcialidade, não se pode negar que am­bas contêm verdades fundamentais. Por mais contraditórias que sejam, uma não exclui a outra. A teoria freudiana nos se­duz por sua simplicidade, a tal ponto que quase nos causa lástima ao ser atacada por uma afirmação em contrário. O mesmo vale para a teoria de Adler, que também é de uma simplicidade luminosa e convence tanto quanto a de Freud. Não surpreende, pois, que os adeptos de ambas as escolas se aferrem intransigentemente às suas respectivas teorias — cer­tas, porém unilaterais. É humano e compreensível que não es­tejam dispostos a renunciar a uma teoria belíssima e perfeita, trocando-a por um paradoxo ou, o que é pior ainda, perdendo-se na confusão de pontos de vista contraditórios.
Como ambas as teorias são amplamente certas e, ao que parece, explicam a matéria, é óbvio que a neurose deve ter dois aspectos contraditórios, um dos quais é apreendido pela teoria de Freud e o outro, pela de Adler. Como é que um cien­tista só vê um lado e um outro só o outro? Por que cada um Pensa que a sua posição é a única válida? Provavelmente porque ambos vêem na neurose antes de tudo aquilo que corres­ponde à sua característica pessoal. É pouco provável que os casos de neurose que Adler chegou a analisar tenham sido inteiramente diversos dos que Freud conhecia. É lógico que ambos tenham partido de um mesmo material de experiência, como a peculiaridade de cada um faz enxergar as coisas maneira diferente, desenvolvem opiniões e teorias totalmente diversas. Adler vê como um sujeito que se sente inferior e der­rotado procura aceder a uma superioridade ilusória, mediante "protestos", "manobras" e outros estratagemas adequados, in­discriminadamente, contra pais, educadores, superiores, autori­dades, situações, instituições ou seja lá o que for. Até a se­xualidade figura entre os estratagemas. Esta concepção está ba­seada numa supervalorização do sujeito, em face do qual as características e a significação dos objetos desaparecem por completo. Estes são considerados, no máximo, como portadores de tendências repressivas. Creio não estar equivocado na mi­nha suposição de que a relação amorosa e outros anseios que visam objetos também sejam considerados por Adler como dimensões essenciais. Em sua teoria da neurose, porém, não lhes é atribuído o papel principal, como na de Freud.
Freud vê seu paciente constantemente na dependência de e relacionado com objetos importantes. Pai e mãe exercem um papel fundamental. Todas as influências ou condicionamentos que eventualmente ainda venham a ter importância na vida do paciente remontam, em causalidade direta, a essas potências primordiais. O conceito de transferência, ou, em outras pala­vras, a relação paciente/analista, é a "pièce de résistance" de sua teoria. Sempre se deseja um objeto especificamente quali­ficado, ou então se lhe opõe resistência, e isso invariavelmente de acordo com o modelo da relação com os pais adquirido na primeira infância. O que brota do sujeito é essencialmente um desejo cego de prazer. Mas esse desejo sempre recebe a sua qualidade de objetos específicos. Para Freud, os objetos são de extrema importância e têm a quase exclusividade da força determinante, ao passo que o sujeito se torna surpreen­dentemente insignificante e, na realidade, não é mais do que uma fonte do desejo de prazer ou uma "morada do medo". Como já salientamos, Freud também conhece os "impulsos do eu"; mas esta expressão já basta para indicar que sua idéia do sujeito é diametralmente diversa da dimensão especial que cabe ao sujeito na concepção adleriana.
Sem dúvida, ambos os cientistas vêem o sujeito em rela­ção ao objeto; mas que diferença no modo de ver essa rela­ção! Em Adler a ênfase é posta num sujeito que se afirma e procura manter sua superioridade sobre os objetos, sejam eles quais forem. Em Freud, ao contrário, a ênfase é posta inteiramente nos objetos, que, conforme suas características especiais, são proveitosos ou prejudiciais ao desejo de prazer do sujeito.
Esta disparidade não pode ser outra coisa senão uma dife­rença de temperamento, uma oposição entre dois tipos de espírito humano, num dos quais o efeito determinante provém preponderantemente do sujeito e no outro, do objeto. Uma po­sição mediana, que seria, digamos, a do senso comum, admi­tiria que a atuação humana é condicionada tanto pelo objeto quanto pelo sujeito. Ambos os estudiosos argumentam que sua teoria não pretende ser uma explicação psicológica do homem normal, mas uma teoria da neurose. Sendo assim, Freud de­veria explicar e tratar muitos dos seus casos pelo enfoque de Adler; este, por sua vez, deveria, em outros tantos casos, fazer sérias concessões aos pontos de vista defendidos por seu ex-professor. O que, no entanto, não foi o que se deu, nem com um nem com o outro.
Observando o dilema, eu me pergunto: será que existem pelo menos dois tipos diferentes de pessoas, um dos quais se interessa mais pelo objeto e o outro por si mesmo? E podemos dar-nos por satisfeitos com a explicação de que um deles só vê um lado e o outro só o outro e que por isso os resultados são diametralmente diferentes? Como já dissemos, seria absur­do admitir que o destino faça uma escolha tão sutil dos pa­cientes que cada grupo caia nas mãos do médico que lhe con­vém. Há muito tempo venho percebendo, tanto no que me diz respeito quanto em relação a meus colegas, que tratamos com relativa facilidade de certos casos, ao passo que em outros não há meio de acertar. É de importância capital para o tra­tamento o fato de que se estabeleça ou não uma boa relação entre o médico e o paciente. Caso não se crie um relaciona­mento natural e de confiança dentro de um curto espaço de tempo, é melhor que o paciente escolha outro médico. Tam­bém nunca me envergonhei de recomendar a outro colega um Paciente cujo tipo não se entrosasse com o meu ou me fosse antipático. Isto no próprio interesse do paciente, pois num caso assim estou certo de que o meu trabalho não seria bem feito. Todos temos as nossas limitações pessoais. Principalmente como terapeutas que somos, sempre é bom ter isso em ente. Diferenças pessoais muito grandes ou incompatibilidades geram resistências exageradas e supérfluas, que nem são justificadas. Na realidade, a controvérsia Freud/Adler não passa de um simples paradigma, um caso entre os muitos tipos de atitude possíveis.
Essa questão constituiu minha grande preocupação durante muito tempo. Finalmente, fundamentado em muitas observa­ções e experiências, cheguei a apresentar dois tipos básicos de comportamento ou de atitude, ou seja, a introversão e a extroversão. A primeira atitude, quando normal, é caracterizada por um ser hesitante, reflexivo, retraído, que não se abre com facilidade, que se assusta com os objetos e sempre está um pouco na defensiva, gostando de se proteger por trás do escudo de uma observação desconfiada. A segunda, quando normal, é caracterizada por um ser afável, aparentemente aberto, de boa vontade, que se adapta bem a qualquer situação, se rela­ciona facilmente com as pessoas e, não raro, se lança despreo­cupado e confiante em situações desconhecidas sem levar em conta a eventualidade de certos riscos. É evidente que no pri­meiro caso é o sujeito quem decide e no segundo o objeto.
Naturalmente, esses traços não passam de um esboço ru­dimentar dos dois tipos.1 Empiricamente, essas duas atitudes raramente são observadas em seu estado puro. Mais adiante voltarei ao assunto. Muitas vezes não é fácil determinar o tipo, porque há inúmeras variações e possibilidades de compensa­ção. Além das oscilações individuais, as variações podem ser determinadas pela predominância de uma das funções da cons­ciência, como o pensamento ou o sentimento, o que imprime um caráter especial na atitude básica. As freqüentes compen­sações que o tipo básico apresenta provêm em geral dos ensi­namentos da vida: aprendemos, às vezes depois de muito so­frer, que nem sempre podemos soltar as rédeas do nosso ser. Em outros casos, nos indivíduos neuróticos, por exemplo, mui­tas vezes não se sabe se estamos diante de uma atitude cons­ciente ou inconsciente, uma vez que, devido à dissociação da personalidade, ora aparece uma metade, ora outra, confundindo o nosso julgamento. Por essa mesma razão, é tão difícil con­viver com pessoas neuróticas.
As enormes diferenças entre os tipos, efetivamente existentes (descrevi oito grupos distintos no livro que acabo de citar)2 possibilitaram-me a compreensão das duas teorias controverti­das sobre a neurose como manifestações de tipos antagônicos.
1. O problema dos tipos foi elaborado no meu livro Psychologische Typen, Obras Completas, Vol. 6.
2. Não abrange, evidentemente, todos os tipos existentes. Outros critérios de dife­renciação são: idade, sexo, atividade, emocionalidade e nível de desenvolvimento. Fun­damento a minha caracterização dos tipos nas quatro funções de orientação da cons­ciência: sentimento, pensamento, sensação e intuição. Ver Psychologische Typen, 1950, p. 467ss, Obras Completas, Vol. 6, § 642ss.

Essa constatação redundou na necessidade de nos colocar-mos acima das posições antagônicas, criando uma teoria que fosse justa, não para com uma ou com a outra, mas para com as duas igualmente. Logo, é indispensável fazer a crítica de ambas as teorias apresentadas. Essas teorias, quando apli­cadas a ideais exaltados, atitudes heróicas, dramaticidade ou uma convicção profunda, são apropriadas para, através de um longo processo, trazê-los de volta à realidade banal do dia-a-dia. No entanto, elas não deveriam ser aplicadas a tais coisas, por­que as duas teorias são instrumentos pertencentes ao equipa­mento terapêutico, bisturis impiedosos e afiados usados pelo médico para extrair a parte doente e nociva do corpo do pa­ciente. Nietzsche, com sua crítica destrutiva dos ideais, pre­tendia fazer o mesmo, pois os considerava como excrescências doentias da alma da humanidade (há casos em que isso real­mente é verdade): Nas mãos de um médico habilidoso, de um verdadeiro conhecedor da alma humana, que tenha o "sen­tido das nuanças" (para empregar a expressão de Nietzsche), e aplicadas ao que está realmente doente numa alma, ambas as teorias são corrosivos salutares, quando usadas em dosagens apropriadas a cada caso. Tornam-se prejudiciais e perigo­sas em mãos inaptas para medir e avaliar. São métodos críti­cos e têm em comum com a crítica em geral o fato de serem bons onde algo deve e precisa ser destruído, dissolvido e redu­zido, mas só produzirão dano onde for necessário construir. Poderíamos deixar passar essas teorias sem alardear a res­to, visto que, como venenos medicinais, são confiadas às mãos seguras do médico.
A utilização proveitosa desses corrosivos requer um conhecimento excepcional da alma. É indispensável saber distinguir o doentio e inútil do que tem valor e precisa ser conservado. Isto simplesmente pertence ao rol das coisas mais difíceis. Quem quiser sofrer o impacto de uma leitura acerca dos enganos que podem ser cometidos por um médico "psicologizante" irresponsável que se baseie em preconceitos baratos e Pseudocientíficos, que estude o trabalho de Moebius 3 sobre Nietzsche, ou então os diversos tratados "psiquiátricos" sobre o "caso" de Cristo. Certamente tal pessoa exclamaria conosco: coitado do paciente que for "compreendi­do" dessa maneira!
3. Moebius, Paul Julius, Über das Pathologische bei Nietzsche, 1902.

As duas teorias da neurose não são gerais, mas sim "remédios de uso tópico", dissolventes e redutivos. "Você não passa de..." — só sabem dizer isso. Explicam ao doente que os seus sintomas vêm daqui ou dali, não passam disso ou daquilo. Seria injusto afirmar que a redução não seja eficaz em certos casos. Mas promover a teoria redutiva a uma teoria global da essência, tanto da alma doente como da sadia, simplesmente não tem cabimento. Pois a alma humana, seja doente ou sã, não pode ser esclarecida apenas redutivamente. Não há dúvida de que Eros está sempre presente, sempre e em toda parte. Não há dúvida de que o impulso de poder penetra no que há de mais sublime e mais real na alma humana. Mas a alma não é só isso ou aquilo, ou, se preferirem, isso e aquilo, mas tam­bém tudo o que ela já fez e ainda vai fazer com isso. Uma pessoa só foi compreendida pela metade, quando se sabe a proveniência de tudo o que aconteceu com ela. Se fosse só isso, pouco importaria se já houvesse morrido há muito tempo. Como ser vivo, ela não foi compreendida, porque a vida não é só ontem nem fica explicada quando se reduz o hoje ao ontem. A vida também é amanhã; só compreendemos o hoje se pudermos acrescentá-lo àquilo que foi ontem e ao começo daquilo que será amanhã. Todas as manifestações psicológicas da vida são assim, inclusive os sintomas doentios. Pois os sin­tomas neuróticos não são efeitos de causas passadas, ou seja, da "sexualidade infantil" ou do "impulso de poder infantil", mas também tentativas de uma nova síntese de vida. Tentativas frustradas, não resta dúvida, mas que nem por isso deixam de ser tentativas, com um germe de valor e sentido. São em­briões abortivos devido a condições desfavoráveis de natureza interna e externa.
O leitor perguntará, com certeza: diga-me, pelo amor de Deus, que valor e que sentido pode ter uma neurose, esse fla­gelo inútil e repugnante da humanidade! Ser nervoso — de que serve isso? Ora, provavelmente para as mesmas razões por que Deus criou as moscas e as demais pragas: para que o ho­mem se exercite na virtude da paciência. Por mais tolo que seja esse pensamento do ponto de vista da ciência, ele é sábio do ponto de vista da psicologia. É só substituir "pragas" Por "sintomas nervosos". Até Nietzsche, com seu desmedido des­dém por tolices e banalidades, reconheceu mais de uma vez tudo quanto devia à sua doença. Já vi mais de uma pessoa cuja vida só teve utilidade e sentido graças a uma neurose, que a impedia de cometer todas as asneiras decisivas da vida, obrigando-a a levar uma existência que desenvolvesse seus ger­mes preciosos, que teriam sido sufocados caso a neurose, com mãos de ferro, não a tivesse colocado em seu devido lugar, pois bem, há pessoas cujo sentido e significado da vida jaz no inconsciente, sendo seu consciente só transvios e descami­nhos. Em outras pessoas se dá o contrário; sua neurose tam­bém tem outro significado. Neste caso, uma ampla redução é indicada, mas não no outro.
O leitor admitirá que em certos casos a neurose possa ter um sentido positivo, mas continuará negando que em todos os pequenos casos corriqueiros e banais possa ter uma fina­lidade de tão grande alcance e sentido. Perguntará, por exem­plo, qual o valor da neurose no caso anteriormente descrito de asma e estados histéricos de pavor. Concordo: neste caso, seu valor não é evidente, principalmente quando considerado do ponto de vista de uma teoria redutiva, isto é, do lado som­brio de um desenvolvimento individual.
Como vemos, ambas as teorias de que falamos têm em comum o fato de desvendarem impiedosamente o lado som­brio do homem. São teorias, ou melhor, hipóteses que nos ex­plicam em que consiste o fator que provocou a doença. Logo, tratam não dos valores de uma pessoa, mas dos seus desvalores, que sempre perturbam ao se manifestarem.
Um "valor" é uma possibilidade através da qual a energia pode chegar a desenvolver-se. No entanto, na medida em que um desvalor também é uma possibilidade de desenvolvimento da energia — e que se observa nitidamente na considerável energia inerente às manifestações neuróticas — também pode ser considerado um valor, mas um valor que proporciona ma­nifestações prejudiciais e inúteis de energia. A bem dizer, a energia em si não é boa nem má, nem útil nem prejudicial, mas neutra, posto que tudo depende da forma como a energia é aplicada. A forma é que dá qualidade à energia. Mas, por outro lado, a forma sem a energia também é neutra. Para que se produza um valor verdadeiro, é indispensável que haja ener­gia, de um lado, e, do outro, o valor da forma. Na neurose há energia psíquica 4, sem dúvida, mas numa forma inferior e não aproveitável.
4, Recomendo a leitura do meu livro Über psychische Energetik und das Wesen der Träume, 1948. Obras Completas, Vol. 8.
As concepções das duas teorias redutivas só servem para dissolver essa forma inferior. Neste ponto, agem como corrosivos. Assim, obtemos energia livre, mas neutra. Até hoje predominava a idéia de que essa energia recém-obtida ficava à disposição do consciente do enfermo, podendo ser por ele empregada do modo que lhe aprouvesse. Enquanto se con­siderava a energia como mera força do impulso sexual, fala­va-se em "sublimação" e utilização da mesma. Supunha-se que, com a ajuda da análise, o paciente fosse capaz de sublimá-la, isto é, de usá-la; não para exercer a sexualidade, mas para o exercício de uma arte ou outra atividade qualquer que fosse boa ou útil. Segundo este ponto de vista, o paciente tem a pos­sibilidade de realizar a sublimação das suas forças impulsivas de acordo com a sua vontade e a sua tendência.
Até certo ponto tal opinião tem sua razão de ser, na medida em que o homem tem condições de imprimir uma dire­triz específica e determinada à sua vida. Sabemos, no entanto, que não existe previsão humana ou filosofia de vida capaz de predeterminar o rumo da nossa vida, a não ser a curto prazo. Isto é válido apenas para o tipo de vida "comum", não para o tipo "heróico". Este último modo de vida também existe, mas é incontestavelmente mais raro do que o primeiro. E a ele não se aplica a afirmação que acabamos de fazer a res­peito de se imprimir a curto prazo um rumo definido à vida. O rumo da vida heróica é incondicional: são as decisões do destino que a orientam; pode ser que a resolução de seguir uma determinada direção se mantenha inabalável até o amargo fim. Mas, em geral, o médico só trata de pessoas humanas; raramente, de heróis voluntários. Nos casos de heroísmo, trata-se em geral de um suposto heroísmo, que não passa de obsti­nação infantil contra um destino mais forte, ou então de uma atitude presunçosa para encobrir um sentimento de inferiori­dade. No poderoso dia-a-dia há infelizmente pouco lugar para coisas fora dos padrões que sejam sadias. Há pouco lugar para o heroísmo ostensivo. Não que o desafio do heroísmo nunca bata à nossa porta. Muito pelo contrário! Enfrentar a vida cotidiana, com todas as suas exigências banais de dedicação, paciência, perseverança e sacrifícios, humildemente, sem visar o aplauso, sem grandes gestos heróicos — este é o nosso he­roísmo cotidiano, invisível para os outros. Maçantes, enfado­nhas exigências, que, quando não acolhidas, produzem neurose. Para escapar a elas, muitos já ousaram tomar a grande decisão da sua vida e levá-la a cabo sem se importar com a opinião alheia. Diante de um destino assim, só nos resta inclinarmo-nos. Mas, como dissemos, esses casos são raros; os outros constituem a grande maioria. O rumo dessas vidas não obedece a uma linha simples e bem traçada. O destino abre-se diante delas, confuso e com uma profusão de possibilidades. E no entanto só uma dessas possibilidades é a sua, o caminho certo. Quem se atreveria — por mais que conhecesse seu pró­prio caráter — a determinar de antemão essa única via possí­vel? Com força de vontade pode-se conseguir muita coisa, não resta a menor dúvida. Mas, considerando o destino de certas personalidades dotadas de grande força de vontade, é um erro fundamental querer submeter seu próprio destino à sua von­tade, a qualquer preço. Nossa vontade é uma função dirigida pela reflexão; logo, ela depende da qualidade da nossa refle­xão. A reflexão — a verdadeira reflexão — tem que ser racional, isto é, sensata. Mas já foi provado, ou será possível provar algum dia, que vida e destino concordam com a nossa razão humana ou são racionais?/Pelo contrário, temos base para sus­peitar que são irracionais ou, em última análise, que têm um fundamento que transcende a razão humana. A irracionalidade dos acontecimentos revela-se no que chamamos de acaso. Temos que negá-lo, evidentemente, porque não podemos pensar "a priori" em processo algum que não seja causal e necessaria­mente condicionado; logo, não pode ser também casual.5 Mas na prática o acaso sempre existe; aliás, de uma forma tão insistente que poderíamos tranqüilamente dispensar a nossa filosofia causal. A plenitude da vida tem normas e não as tem, é racional e irracional, por isso a razão e a vontade fundada na razão só têm validade em pequenos espaços da vida. Po­demos estar certos de uma coisa: quanto mais prolongarmos o rumo escolhido pela razão, tanto mais excluiremos a possi­bilidade de viver a vida irracional, que, no entanto, tem o mesmo direito de ser vivida. O fato de o homem ter chegado à condição de imprimir rumo à vida foi de inegável utilidade. Podemos afirmar, e com toda razão, que a maior vitória da sanidade foi a conquista da racionalidade. No entanto, não queremos dizer que isso deva continuar ou continue sempre assim, aconteça o que acontecer.
5. A física moderna pois fim a essa causalidade estrita. Só ficou a "probabilidade estatística”. Em 1916 eu já apontara a condicionalidade da interpretação causal na psicologia, o que na época, foi mal recebido. Ver Collected Papers on Analytical Psychology, 1920, 2ª edição, p. X e XV.

A terrível catástrofe da I Guerra Mundial veio frustrar por completo o mais otimista dos racionalistas culturais. Em 1913, Ostwald escrevia as se­guintes palavras: "O mundo inteiro concorda que o estado atual de paz armada é insustentável e que pouco a pouco a situação se tornará impossível. Está exigindo sacrifícios imensos de cada nação, que ultrapassam de longe as despesas destinadas a fins culturais e não acedem a quaisquer valores positivos. Se a humanidade encontrasse meios e caminhos de eliminar esses preparativos de guerras que nunca sobrevêm, essa imobilização de considerável parcela da nação na faixa de idade mais vigorosa e produtiva para fins de treinamento de guerra e os inú­meros prejuízos decorrentes do atual estado de coisas, seria possível obter uma economia de energias de tais proporções que, a partir daí, promoveria um florescimento imprevisível do desenvolvimento cultural. Pois a guerra é semelhante à luta pessoal para solucionar as contradições de vontades diferen­tes: o mais antigo de todos os recursos possíveis e, por isso mesmo, o mais inútil, o que acarreta o mais grave desperdício de energia. A total eliminação tanto da guerra potencial como da guerra real é inteiramente conforme ao espírito do impe­rativo energético, e é um dos mais importantes desafios à cul­tura dos nossos dias".6
6. Wilhelm Ostwald, Die Philosophie der Werte, 1913, p. 312s.

Mas a irracionalidade do destino não quis o mesmo que a racionalidade dos pensadores bem intencionados. Quis muito mais do que a simples utilização dos soldados e das armas armazenadas: quis uma destruição monstruosa, tresloucada, uma chacina em massa, sem precedentes, para que a humani­dade eventualmente entendesse que a intenção racional só consegue dominar um dos lados do destino.
O que se diz da humanidade em geral também se aplica a cada indivíduo em particular, pois a humanidade é formada por um conjunto de indivíduos. A psicologia da humanidade corresponde à psicologia individual. A Guerra Mundial foi um terrível ajuste de contas com a intencionalidade racional da civilização. O que chamamos de "vontade" no indivíduo chama-se "imperialismo" nas nações, pois a vontade é a expressão do poder sobre o destino, isto é, a exclusão do acaso. Civilização é sublimação racional e "utilitária" de energias livres, produ­zida voluntária e intencionalmente. No indivíduo dá-se o mes­mo. Da mesma forma que a idéia de uma organização da cultura universal sofreu uma cruel advertência com esta guerra, sim o indivíduo também precisa aprender várias vezes em a vida que as chamadas energias "disponíveis" não são dis­poníveis a seu bel-prazer.
Nos EUA um empresário de uns 45 anos foi consultar-me. Seu caso ilustra muito bem o que acabei de dizer. Tratava-se de um típico "self-made man" americano, que tinha começado do nada e subira na vida por esforço próprio. Tinha sido muito bem sucedido em seus empreendimentos e fundara uma em­presa gigantesca. Pouco a pouco conseguira organizá-la de tal forma que lhe foi possível afastar-se de sua direção. Dois anos antes de me ver, havia se afastado da firma. Até então vivera exclusivamente para os negócios, concentrando nisso todas as suas energias, com a incrível intensidade e unilateralidade ca­racterísticas de um empresário americano bem sucedido. Ha­via comprado uma fazenda maravilhosa, onde tencionava "vi­ver". Para ele "viver" significava cavalos, automóveis, golfe, tênis, festas, etc. Mas fizera a conta sem o dono do restau­rante. A energia em "disponibilidade" nada tinha a ver com essas perspectivas convidativas: encasquetou com algo bem diferente. Ao cabo de algumas semanas dessa vida nababesca, tão ardentemente desejada, começou a perscrutar obsessiva­mente estranhas e vagas sensações do corpo; algumas sema­nas mais bastaram para precipitá-lo numa hipocondria in­crível. Teve um colapso nervoso total. O homem sadio, que tinha uma força física incomum e uma extraordinária energia, transformou-se numa criança chorona. E com isso acabou-se toda a sua glória. Tinha um medo atrás do outro e as obses­sões hipocondríacas torturavam-no mortalmente. Foi consultar um famoso especialista, que logo reconheceu que o que faltava ao homem era trabalho. O paciente concordou e retomou seu lugar na empresa. Mas, para seu grande desespero, não conse­guiu mais sentir nenhum interesse pelos negócios. Nada ajudou: nem paciência, nem resolução. Por mais que fizesse, não conseguiu canalizar a energia de volta para os negócios. Como era de esperar, o seu estado agravou-se mais ainda. Tudo o antes era energia viva e produtiva, voltou-se contra ele, lenta e destrutivamente. Houve como que uma revolta de gênio criador contra ele mesmo. Assim como criara antes grandes organizações no mundo, agora seu demônio criava re­atados sistemas e mecanismos hipocondríacos que o arrasavam. Quando o vi, já era uma ruína moral, sem esperanças.
Em todo caso, tentei fazê-lo ver que é possível recolher a fabulosa energia como a que empregara no negócio, mas que a questão era: para onde canalizá-la? Pode acontecer que nem mesmo os mais belos cavalos, os carros mais velozes e as festas mais divertidas sejam um atrativo para a energia. No entanto, era razoável pensar que uma pessoa que dedicara uma vida inteira a um trabalho sério tivesse um direito na­tural aos prazeres da vida. Sim, se o destino se comportasse de acordo com o bom senso humano, é assim que deveria ser: primeiro, o trabalho; depois, o descanso bem merecido. Mas na realidade as coisas que acontecem são irracionais. A ener­gia tem o inconveniente de exigir um fluxo adequado para se produzir; caso contrário, fica represada e torna-se destrutiva. Regride a situações anteriores: no presente caso, à lembrança de uma infecção sifilítica que contraíra 25 anos antes. Mas isto também não passava de uma das etapas no caminho de reviver as reminiscências infantis, que nesse meio tempo se haviam praticamente esvaído. A sua primitiva relação com a mãe é que orientou sua sintomatologia. Tratava-se de um "me­canismo" para despertar a atenção e o interesse da mãe (há muito falecida). E esta não foi a última etapa, pois a meta era obrigá-lo a voltar ao próprio corpo, depois de ter vivido só com a cabeça desde a juventude. Um dos lados do seu ser se diferenciara, deixando o outro retido num estado de torpor corporal. Precisava desse outro lado para poder "viver". A "depressão" hipocondríaca forçava-o, por assim dizer, a tomar conhecimento do corpo, que sempre havia ignorado. Se ele tivesse tido condições de entender o sentido da depressão e da ilusão hipocondríaca e de conscientizar-se das fantasias re­sultantes de um tal estado, teria sido a salvação. Naturalmente, não fui correspondido no amor pelos meus argumentos, como era de se esperar. O caso estava avançado demais para que se pudesse contar com uma perspectiva de cura. Só lhe res­tava continuar o tratamento até a morte.
Este caso mostra claramente que não está em nossas mãos encaminhar uma energia "disponível", à vontade, para um obje­to de nossa escolha. Com as energias aparentemente disponí­veis, obtidas após a destruição das suas formas inaproveitáveis pelos corrosivos da redução, dá-se em geral exatamente o mes­mo. Como já dissemos, no melhor dos casos essa energia pode ser utilizada da forma que a vontade determina, mas só por um curto espaço de tempo. Quase sempre ela se recusa a seguir as possibilidades racionalmente propostas pelo tempo fora. A energia psicológica tem o capricho de querer satis­fazer suas próprias exigências. Por maior que seja a quanti­dade de energia existente, não podemos aproveitá-la enquanto não conseguirmos estabelecer um fluxo.
O problema do fluxo é uma questão eminentemente prá­tica que se coloca na maioria das análises. Por exemplo, no caso propício de haver um encaminhamento da energia dis­ponível, a chamada libido 7, para um objeto razoável, a nossa tendência é acreditar que a transformação foi operada por um esforço consciente da vontade. Mas nos enganamos redon­damente. Nem com o maior esforço do mundo conseguiríamos isso, se já não houvesse simultaneamente um fluxo natural no mesmo sentido. A importância do fluxo é constatada quan­do, apesar dos mais desesperados esforços e de o objeto esco­lhido e a forma desejada serem os mais convincentes e sen­satos possíveis, não se consegue operar a transformação, pro­duzindo apenas uma nova repressão.
7. O Leitor deve ter percebido, pelo que ficou dito até agora, que eu utilizo o conceito da libido introduzido por Freud (e que se adapta muita bem à prática), num sentido mais amplo que o seu. Libido significa energia psíquica, para mim, ou o mesmo que intensidade energética de conteúdos psíquicos. Freud identifica a libido com Eros, concordando com o seu pressuposto teórico, e quer vê-la distinta de uma energia psíquica geral. Diz o seguinte: Gesammelte Schriften, Vol. 5, p. 92: "Estabelecemos o conceito da libido como sendo uma força quantitativamente variável, que mediria transformações no campo da excitação sexual. Diferenciamos Em t da energia que deve estar na origem dos processos psíquicos em geral.."
Em outra parte Freud menciona que lhe falta "um termo análogo a libido" para o impulso de destruição. Como o referido impulso de destruição também é um fenômeno energético, parece-me mais simples definir a libido como um conceito geral de intensidades psíquicas, ou simplesmente como energia psíquica. Ver Symbole der Wandlung, 1952, p. 218ss. Obras Completas, Vol. 5; e Über psychische Energetik und das Wesen der Träume, 1948, p. 7ss, Obras Completas, Vol. 8

Estou mais do que convencido de que o caminho da vida só continua onde está o fluxo natural. Mas nenhuma energia é produzida- onde não houver tensão entre contrários; por isso, é preciso encontrar o oposto da atitude consciente. É interes­sante verificar como essa compensação dos opostos também teve sua função na história da teoria da neurose: a teoria de Freud representa Eros; a de Adler, o poder. Pela lógica, o con­trário do amor é o ódio; o contrário de Eros, Phobos (o medo). Mas, psicologicamente, é a vontade de poder. Onde im­pera o amor, não existe vontade de poder; e onde o poder tem precedência, aí falta o amor. Um é a sombra do outro. Quem se encontra do ponto de vista de Eros procura o con­trário, que o compensa, na vontade de poder. Mas quem põe a tônica no poder, compensa-o com Eros. Visto do ponto de vista unilateral da atitude consciente, a sombra é uma parte inferior da personalidade. Por isso, é reprimida; e devido a uma intensa resistência. Mas o que é reprimido tem que se tornar consciente para que se produza a tensão entre os contrários, sem o que a continuação do movimento é impossível. A cons­ciência está em cima, digamos assim, e a sombra embaixo, e como o que está em cima sempre tende para baixo, e o quente para o frio, assim todo consciente procura, talvez sem per­ceber, o seu oposto inconsciente, sem o qual está condenado à estagnação, à obstrução ou à petrificação. É no oposto que se acende a chama da vida.
Foram concessões à lógica intelectual, por um lado, e ao preconceito psicológico, por outro, que levaram Freud a qua­lificar o contrário de Eros como impulso de destruição e morte. Ora, antes de mais nada, Eros não é sinônimo de vida. Mas quem pensa assim evidentemente acha que o seu con­trário é a morte. Em segundo lugar, o oposto do seu princípio supremo é, para todo o mundo, aparentemente, o princípio de destruição, a morte, o mal pura e simplesmente. A pessoa não o julga capaz de uma força positiva de vida, por isso o teme e evita.
Como vimos, existem muitos princípios supremos de vida e de filosofia, com suas respectivas formas de contrários com­pensatórios. Já salientei dois tipos de contrários, que, a meu ver, são os principais. Designei-os como tipos introvertidos e extrovertidos. William James 8 já havia notado a existência des­ses dois tipos entre os pensadores. Classificara-os em "tender-minded" e "tough-minded". Ostwald 9 também propôs para os grandes sábios uma distinção análoga: o tipo clássico e o tipo romântico. Escolhi esses dois nomes entre muitos outros só para mostrar que não me encontro isolado nesta minha idéia dos tipos. Provei, com minhas pesquisas históricas, que um grande número de importantes questões e conflitos na história do espírito repousam na oposição desses dois tipos. A mais significativa dessas questões é a oposição entre nominalismo e realismo, que começou com a divergência entre as escolas pla­tônica e megárica e foi herdada pela filosofia escolástica. Abe­lardo teve então o grande mérito de, pelo menos, tentar uni­ficar os pontos de vista opostos no conceitualismo.10 Essa con­trovérsia continuou até nossos dias, manifestando-se na oposição entre idealismo e materialismo.
8. Pragmatism, 1911.
9. Grosse Münner, 1910.
10. Psychologische Typen, 1950, p. 64ss, Obras Completas, Vol. 6 § 65ss.

Como na história do espí­rito em geral, assim também cada indivíduo participa por sua vez dessa oposição entre os tipos. Uma pesquisa mais cuida­dosa revelou que os casamentos se fazem de preferência entre esses dois tipos, inconscientemente, para uma complementação recíproca. A natureza reflexiva do introvertido leva-o a refletir ou a meditar sempre antes de agir. Sua atuação é, evidente­mente, mais lenta. Pela timidez e desconfiança diante dos obje­tos é, evidentemente, mais lenta. Pela timidez e desconfiança diante dos objetos, é levado a hesitar e sempre encontra difi­culdades em adaptar-se ao mundo exterior. Inversamente, o extrovertido tem um relacionamento positivo com as coisas. Ele é, por assim dizer, atraído por elas. É tentado por situa­ções novas e desconhecidas. Chega a se lançar de corpo e alma em coisas novas, só para conhecê-las. Em geral, age primeiro e só depois reflete. Sua ação é rápida, sem hesitações ou escrúpulos. Ambos os tipos são como que criados para uma simbiose. Um encarrega-se da reflexão; o outro, da iniciativa e da ação prática. Quando se casam, esses dois tipos podem formar um casal ideal. Enquanto estão totalmente absorvidos com a adaptação às inúmeras necessidades da vida, combinam maravilhosamente bem. Mas depois que o homem ganhou di­nheiro suficiente ou quando uma herança importante lhes cai do céu e faz cessar a necessidade externa, eles têm tempo para se preocupar um com o outro. Antes disso, voltavam as costas um para o outro e lutavam pela sobrevivência. Agora, porém, voltam-se um para o outro, querem entender-se e des­cobrem que nunca houve entendimento entre eles. Cada qual fala uma língua diferente. Assim se instala a briga entre os dois tipos. Briga violenta, cheia de veneno e de acusações de­preciativas e recíprocas, mesmo quando recônditas e inconfessas; pois o valor de um é desvalor do outro. Seria razoável Pensar que a consciência do próprio valor poderia bastar para conhecer tranqüilamente o valor do outro, tornando supérflua qualquer disputa. Vi grande número de pessoas argumen­to assim, sem no entanto chegar a qualquer resultado satisfatório. Quando se trata de pessoas normais, esse tempo transição é mais ou menos bem superado. Normal é a pessoa que simplesmente consegue viver, quaisquer que sejam as circunstâncias, contanto que lhe sejam garantidas as condições mínimas de vida. Mas muitos não o conseguem; por isso não existem muitas pessoas normais. O que comumente entendemos por "homem normal" é, na realidade, o homem ideal, portador de uma feliz mistura de caráter — o que é raríssimo. A grande maioria das pessoas mais ou menos dife­renciadas requer condições de vida que lhes garantam algo mais do que simplesmente comer e dormir com relativa segu­rança. Para essas, o fim de uma relação simbiótica representa um abalo profundo.
Não é fácil entender por que deve ser assim. Considerando que nenhum ser humano é exclusivamente introvertido nem ex­clusivamente extrovertido, ambas as atitudes existem dentro dele, mas só uma delas foi desenvolvida como função de adap­tação; logo, podemos supor que a extroversão cochila no fundo do introvertido, como uma larva, e vice-versa. Pois bem, é exa­tamente isso o que acontece. O introvertido tem em si uma parte extrovertida, inconsciente, porque os olhos de sua cons­ciência estão sempre voltados para o sujeito. Aliás, ele vê o objeto, mas tem imagens errôneas ou inibitórias a respeito, de modo que sempre se mantém o mais distante possível, como se o objeto fosse algo poderoso e perigoso. Quero esclarecer, através de um exemplo, o que acabo de dizer: dois rapazes caminham juntos pelo campo. Chegam a um castelo maravi­lhoso. Ambos gostariam de ver o castelo por dentro. O intro­vertido diz: "Gostaria de saber como é por dentro". O extro­vertido, por sua vez, diz: "Vamos entrar"; e vai entrando pelo portão. O introvertido o detém: "Talvez seja proibida a entra­da", imaginando vagamente uma série de represálias, como vio­lências policiais, multas, cachorros brabos, etc. Ao que o outro replica: "Podemos perguntar, na certa l vão nos deixar entrar", imaginando velhos porteiros afáveis, castelões hospitaleiros e possíveis aventuras românticas. Graças ao otimismo do extrover­tido, conseguem realmente entrar no castelo. Mas agora começa a peripécia. O castelo foi reformado por dentro. Só tem umas poucas salas, com uma coleção de velhos manuscritos. Por acaso, essa é a paixão do rapaz introvertido. Mal chega a vê-los, fica como que transformado, absorto na contemplação dos te­souros, suas palavras exprimindo entusiasmo. Envolve o guar­da numa conversa, para obter mais informações. Como as res­postas do guarda não o satisfazem, ele pergunta pelo conser­vador e sai imediatamente à sua procura, para continuar a investigação. Mas, enquanto isso, a animação do extrovertido vai diminuindo cada vez mais; vai ficando de cara comprida e começa a bocejar. Nada de porteiros afáveis, nada de hospitalidade cavalheiresca, nem sombra de aventuras românticas: apenas um castelo reformado. Não precisava ter saído de casa para ver manuscritos. Enquanto cresce o entusiasmo de um, vai acabando a disposição do outro; o castelo o aborrece, os manuscritos cheiram a biblioteca, a biblioteca faz com que se lembre da faculdade, a faculdade é associada a estudo, exames: uma ameaça. Pouco a pouco, um véu sombrio vai descendo sobre o castelo, antes tão interessante e atraente. O objeto fica negativo. "Não é formidável", exclama o introvertido, "desco­brir essa coleção maravilhosa assim por acaso?" "Eu estou achando isso aqui muito sem graça", responde o outro, sem esconder o seu mau humor. Isso irrita o primeiro, que resolve para si mesmo: "Nunca mais vou viajar com esse sujeito!" O extrovertido, por sua vez, fica irritado com a irritação do com­panheiro, pensa que sempre achara o outro um perfeito egoísta, sem a menor consideração pelos outros. "Onde já se viu des­perdiçar a linda primavera lá fora! Poderíamos estar aprovei­tando! E tudo por causa dessa curiosidade egoísta!"
Que foi que aconteceu? Ambos caminham juntos em alegre simbiose, até chegarem ao castelo fatal. Lá dizia o introvertido "pré-meditativo" (prometéico): "Poderíamos vê-lo por dentro". O extrovertido ativo e "pós-meditativo" (epimetéico) abriu o caminho.11 Nessa altura, o tipo se inverte: o introvertido, que hesitava em entrar, não quer mais sair e o extrovertido amal­diçoa o momento em que entrou no castelo. O primeiro fica fascinado pelo objeto; o segundo, por seus pensamentos nega­tivos. No instante em que o primeiro avistou os manuscritos, já estava perdido. Sua timidez desapareceu, o objeto tomou posse dele: entregou-se documente. Em compensação, o segun­do sentiu uma resistência crescente em relação ao objeto e, finalmente, fez-se cativo do seu sujeito mal humorado. O pri­meiro tornou-se extrovertido; o segundo, introvertido. Enquanto os dois caminhavam juntos na mais alegre harmonia, um não perturbava o outro, porque cada qual estava "na sua", Ruralmente. Eram positivos um para o outro, porque as suas atitudes se complementavam. Mas complementavam-se porque a atitude de um sempre compreendia a do outro. A rápida conversa que tiveram é ilustrativa: ambos querem entrar no castelo. a dúvida do introvertido quanto à permissão para entrar também serve para o outro. A iniciativa tomada pelo extrovertido também é de utilidade para o introvertido. A atitude de um também inclui o outro, e isso é quase sempre assim, quando um indivíduo está na atitude que lhe é natural, porque essa atitude se adapta coletivamente, por assim dizer. Com a atitude do introvertido também se dá o mesmo, apesar de que ela sempre parte do sujeito; vai sempre só do sujeito para o objeto, enquanto que a atitude do extrovertido vai do objeto para o sujeito.
11. Ver meus comentários a respeito de Prometeu e Epimeteu de Spitteler, em Psychologische Typen, 1950, p. 227ss, Obras Completas, Vol. 6 § 261ss.

Mas, assim como no introvertido o objeto sobrepuja o sujeito, atraindo-o, sua atitude perde o caráter social. Esquece-se da presença do amigo; não o inclui mais. Submerge no objeto e não vê quanto o amigo se aborrece. E vice-versa: o extrover­tido perde a consideração para com o outro no momento em que sua expectativa não é satisfeita, retraindo-se em suas idéias e humores subjetivos.
Assim sendo, o acontecido pode ser formulado da seguinte maneira: por influência do objeto, apareceu uma extroversão inferior no introvertido, ao passo que uma introversão inferior substituiu a atitude social do extrovertido. Dessa forma, volta­mos à frase que nos serviu de ponto de partida: o valor de um é o desvalor do outro.
Acontecimentos positivos ou negativos podem trazer à tona a função contrária inferior. Sobrevindo isso, manifesta-se a hiper sensibilidade. A hiper sensibilidade é sintoma da existência de uma inferioridade. Assim se estabelecem as bases psicológi­cas da desunião e da incompreensão, não só entre duas pes­soas, como também da cisão dentro de si mesmo. Aliás, a na­tureza da função inferior 12 é caracterizada pela autonomia; é independente, ela nos acomete, fascina e enleia, a ponto de deixarmos de ser donos de nós mesmos e não nos distinguir­mos mais exatamente dos outros.
12. Ver Psychologische Typen, 1950, p. 615s., Obras Completas, Vol. 6 § 261ss.

Mesmo assim, é necessário para o desenvolvimento do caráter que esse outro lado, justamente essa função inferior, também possa manifestar-se. Não podemos permitir que outra pessoa se encarregue permanentemente, simbioticamente, de um dos lados da nossa personalidade. De um momento para outro podemos precisar da outra função, como no exemplo acima, e não estaríamos preparados. As conseqüências podem ser gra­víssimas: o extrovertido perde a sua relação indispensável cora os objetos e o introvertido, a sua, com o sujeito. Por outro lado, é indispensável que a ação do introvertido não seja cons­tantemente inibida por preocupações e hesitações e que o ex­trovertido possa meditar sobre si mesmo, sem prejudicar as suas relações.
Vê-se por aí que a extroversão e a introversão são duas atitudes naturais, antagônicas entre si, ou movimentos dirigi­dos, que já foram definidos por Goethe como diástole e sístole. Em sucessão harmônica, deveriam formar o ritmo da vida. Al­cançar esse ritmo harmônico supõe uma suprema arte de viver. Ou ser totalmente inconsciente, para que nenhum ato cons­ciente venha perturbar a lei natural, ou ser tão altamente cons­ciente, a ponto de ser capaz de querer e poder executar tam­bém os movimentos opostos. Como não podemos retroceder para a inconsciência animal, só nos resta avançar no difícil caminho evolutivo em direção a uma consciência maior. É ver­dade que essa consciência — a que permite viver o grande Sim e o grande Não da vida em liberdade e intenção — é decidi­damente um ideal sobre-humano. (Mesmo assim, não deixa de ser uma meta final. O estágio espiritual do nosso tempo con­sente apenas em querer conscientemente o Sim e em, pelo me­nos, suportar o Não. Conseguir isso já é uma enorme conquista.
O problema dos opostos como princípio inerente à natu­reza humana constitui uma etapa a mais no desenvolvimento do nosso processo de autoconhecimento. Em geral, é um pro­blema da idade madura. O tratamento prático de um paciente nunca vai começar por este problema — principalmente o de um jovem. Comumente, as neuroses juvenis são produzidas por um choque entre as forças da realidade e uma atitude infantil insuficiente, caracterizada, em sua causa, por uma dependência anormal de pais reais ou imaginários e, em sua meta, por uma criatividade deficiente, isto é, por propósitos e ambições adequados. Neste caso as reduções de Freud e Adler são per­feitamente indicadas. Mas existem muitas neuroses que só aparecem na idade madura ou que se agravam de tal forma que os pacientes se tornam incapacitados para o trabalho. Nestes casos é fácil comprovar que já existia em sua juventude uma excessiva dependência dos pais, bem como uma série de ilusões infantis, sem que isso impedisse a escolha de uma profissão, seu exercício bem sucedido e o casamento, um casamento levado aos trancos e barrancos, até que na idade madura a atitude mantida até então entra em colapso. Obviamente, num caso desses, a conscientização das fantasias infantis, da dependência dos pais, etc, de nada adianta, embora seja uma parte necessária do processo, e geralmente não tem efeitos prejudi­ciais. No fundo, a terapia só começa realmente quando o pa­ciente vê que quem lhe barra o caminho não é mais pai e mãe, mas sim ele próprio, isto é, uma parte inconsciente de sua per­sonalidade que continua desempenhando o papel de pai e mãe. Por maior que seja a utilidade deste conhecimento, ele ainda é negativo, pois diz apenas: "Reconheço que não são meus pais que estão contra mim, mas eu mesmo". Mas quem é que se opõe nele? Que parte misteriosa de sua personalidade é essa que se escondeu por detrás das imagens de pai e mãe e que por tanto tempo o fez acreditar que a origem do seu mal o atacou de fora? Esta parte é o oposto da sua atitude cons­ciente, não lhe dará sossego e o perturbará até que seja aceita. Não há dúvida de que nos jovens libertar-se do passado já é suficiente; porque ainda têm um futuro promissor e cheio de possibilidades pela frente. Basta soltar umas amarras; o ím­peto da vida fará o resto. Mas o problema é diferente para as pessoas que já deixaram boa parte da vida para trás, a quem o futuro não acena mais com fabulosas promessas, que nada mais esperam da vida senão os velhos e habituais deveres e os prazeres duvidosos da velhice.
O jovem que consegue livrar-se do passado vai transferindo as imagens dos pais a figuras que os substituam mais adequa­damente: o sentimento de apego à mãe passa para a mulher, e a autoridade do pai, a professores e superiores que merecem seu respeito, ou então a instituições. Não é uma solução fun­damental, mas um caminho prático, que também é percorrido pela pessoa normal, inconscientemente e, por isso mesmo, sem inibições ou resistências consideráveis.
Mas o problema do adulto, que já completou esse trecho do caminho com maior ou menor dificuldade, é diferente. Pro­curou a mãe na mulher, o pai no marido, e encontrou-os. Hon­rou antepassados e instituições. Por sua vez, tornou-se pai e mãe e talvez já tenha ultrapassado esta fase. De repente viu que o que antes significava para ele progresso e satisfação não passa de engodo, restos de ilusão infantil. Olha agora para tudo isso com um misto de desencanto e inveja, porque à sua frente só se descortina a perspectiva da velhice, o fim de todas as ilusões. Não há mais lugar para pai ou mãe. Todas as ilusões que projetou no mundo e nas coisas retornam a ele, pouco a pouco, cansadas, desgastadas. A energia de todas essas relações lhe é restituída e entregue ao inconsciente, onde vivifica tudo quanto até então deixara de desenvolver.
Os impulsos, antes acorrentados na neurose, quando liber­tos, enchem o jovem de brio e esperança, dando-lhe a possibi­lidade de abrir-se mais para a vida. Na segunda metade da vida o desenvolvimento da função dos contrários, adormecida no inconsciente, significa renovação de vida. No entanto, este de­senvolvimento não se faz mais através da solução de ligações infantis, da destruição de ilusões infantis e da transferência das imagens antigas para novas figuras, mas passa pelo pro­blema dos contrários.
O princípio dos opostos já está, naturalmente, na base do espírito jovem. Qualquer teoria psicológica sobre a psique in­fantil deveria levar em conta esse dado da realidade. Os pontos de vista de Freud e Adler, portanto, só são contraditórios quan­do pretendem valer como teorias globais. Mas, na medida em que se contentarem com o título de técnicas auxiliares, já não entram em contradição nem se excluem mutuamente. A teoria psicológica que quiser ser mais do que simples técnica auxiliar tem que basear-se no princípio dos contrários, pois sem ele só reconstruiria psiques neuróticas desequilibradas. Não há equilíbrio nem sistema de auto-regulação sem oposição. E a psique é um sistema de auto-regulação.
Retomando o fio que deixamos para trás, podemos dizer que agora ficou esclarecido por que a neurose contém justa­mente os valores que faltam ao indivíduo. E também podemos voltar ao caso daquela jovem senhora e a ele aplicar os conhe­cimentos adquiridos. Suponhamos que essa doente seja "ana­lisada". No decorrer do tratamento vai percebendo os pensa­mentos inconscientes encobertos pelos sintomas. Vai recupe­rando, assim, a energia inconsciente que era toda a força dos sintomas. Coloca-se então a questão prática: o que vai acontecer com a energia disponível? De acordo com o tipo psicológico da doente, seria razoável transferir novamente essa energia para um objeto tal como uma atividade filantrópica ou outra ocupação de utilidade. Este caminho é a exceção. Só é possível a pessoas dotadas de energia especial, capazes de doação total, ou a pessoas com disposição natural para atividades desse tipo. Na maioria dos casos, porém, não é o que acontece. É preciso não esquecer que a libido (energia psíquica) já possui o seu objeto no inconsciente — nesse caso, o rapaz italiano ou um ser humano real que o substitua. Assim sendo, por mais desejável que seja uma tal sublimação, ela é evidente­mente impossível. Pois em geral o objeto real oferece um fluxo melhor à energia do que uma atividade ética, por mais bela que seja. Infelizmente, há muita gente falando do homem, mas sempre do homem ideal, de como seria bom que ele fosse, mas nunca do homem tal como ele é na realidade. Mas o mé­dico sempre lida com o homem real, que vai teimar em con­tinuar o mesmo, até que sua realidade seja inteiramente aceita. A educação só pode ser feita a partir da realidade nua, não de uma imagem real deturpada.
Infelizmente, em geral, o rumo a ser tomado pela "energia disponível" não pode ser indicado pela nossa vontade. Ela se­gue o seu fluxo. Aliás, já o tinha encontrado antes de estar completamente desligada da sua forma inaproveitável, porque descobrimos que as fantasias da paciente, que antes giravam em torno do italiano, foram transferidas para o médico.13 Por isso o próprio médico tornou-se o objeto da libido inconsciente. Caso a doente se recuse terminantemente a reconhecer a trans­ferência 14, ou caso o médico não compreenda o fenômeno ou o entenda mal, aparecerão resistências violentas que vão im­possibilitar qualquer relação com o médico. Os doentes não voltam mais, procuram outro médico ou então uma pessoa que os entenda, ou ainda, quando desistem de procurar, ficam ato­lados no problema.
13. Freud introduziu o conceito de transferência para definir as projeções de con­teúdos inconscientes.
14. Contrariamente à opinião de alguns, não estou convencido de que a "transferência para o médico" seja um fenômeno constante e indispensável ao bom êxito da terapia. Transferência é projeção, e a projeção está ou não presente. Necessária ela não é. Em hipótese alguma, pode ser "forjada"; pois, por definição, ela nasce de motivações inconscientes. O médico pode ser a pessoa indicada para a projeção, ou não. Nada nos faz afirmar que ele corresponde necessariamente ao fluxo natural da libido do cliente; pois é bem possível que este último tenha vagamente em vista um objeto de projeção bem mais importante. Às vezes, a não-projeção no médico pode até facilitar consideravelmente a terapia, pois, neste caso, os valores pessoais reais passam a ocupar mais nitidamente o primeiro plano.

Mas se a transferência se der e for aceita, então vai-se en­contrar não só uma forma natural de substituir a antiga forma, mas também uma possibilidade de dar vazão ao processo ener­gético relativamente isento de conflitos. Logo, quando se per­mite que a libido siga o seu curso natural, ela encontrará por si só o caminho para o objeto que lhe é destinado. Quando isso não acontece é porque a vontade rebelou-se contra as leis da natureza ou porque houve interferências prejudiciais.Na transferência primeiramente são projetadas fantasias infantis de toda espécie e estas têm que ser corroídas, ou me­lhor, dissolvidas pela redução. A isso deu-se o nome de solução da transferência. Dessa maneira também se liberta a energia da sua primitiva forma inaproveitável, e mais uma vez nos encontramos diante do problema da energia disponível. Con­fiemos de novo na natureza, que — antes de o procurarmos — já escolheu o objeto capaz de proporcionar-lhe o fluxo adequado.

Nenhum comentário: