quinta-feira, 19 de julho de 2007

CONFERÊNCIA II: 14 DE NOVEMBRO DE 1928

Dr. Jung: Temos uma pergunta: "Como é que criamos símbolos em nossos sonhos? Como podemos estar certos de que a interpretação é correta, especialmente quando não há associações?" Esta, é claro, é uma pergunta muito prática e fundamental. Eu não submeti isto à consideração, até aqui, porque supus como garantido que vocês compreenderam a teoria de análise de sonhos. Estamos convictos de que os sonhos têm significado simbólico, e nós não sabemos se a interpretação está correta, mas fazemos a hipótese de que um sonho significa algo. Suponha que alguém tem um caso que apresenta um problema difícil e tenha chegado a um impasse na análise; há sintomas neuróticos, tentou-se a hipnose e outros métodos, mas nada funciona. Então onde está a chave para destrancar aquela porta? O paciente não sabe. É muito difícil dar uma demonstração da análise de sonhos; não se pode dar completos particulares de um caso de modo a planificá-lo, porque isso envolve toda a história da vida do paciente. Mas aqui está um caso simples:
44 Um tenente suíço[1], oficial da infantaria, um homem de mente simples com uma inteligência não maior que a média, bastante destituído de complexos mentais, veio mancando à minha sala, caminhando de uma maneira muito cautelosa e queixando-se de dores em seus pés, especialmente nos calcanhares, e também em seu coração, "como se estivesse apunhalado". (Sempre temos dores onde nos é mais prejudicial e mais perturbador; nos pés para um oficial de infantaria; um tenor as teria na garganta). Estes sintomas começaram dois meses antes de ele vir a mim; ele fôra tratado por vários médicos e havia tentado hipnose, eletricidade, banhos, etc., mas não conseguiu ajuda. Eu perguntei onde o problema começou, mas seu rosto estava absolutamente inexpressivo; era evidente que ele não tinha idéia, e parecia-lhe impossível me fornecer qualquer material. Todas as perguntas foram em vão. Senti-me quase sem esperanças - o homem era suíço e perfeitamente livre de quaisquer complicações psicológicas - mas pensei, como último recurso, que podiam haver sonhos dos quais algo seria capturado. Os sonhos "transpiram", não estão sob controle; não importa o quão inocente e simples a pessoa seja, há sonhos a partir dos quais se obtém algo só se for possível capturar qualquer extremidade que possa estar de fora. Eu estava certo de que o problema devia ser devido a algum conflito emocional, ou ele não teria tais sintomas, todos de uma vez. Então eu disse a ele: "Não sei qual é a razão para seus sintomas, mas você pode me contar seus sonhos". Fazendo isso eu corri o risco de ser tomado por bruxo por um homem de mente tão simples; perguntar sobre sonhos é quase obsceno, de tal modo que eu tinha que explicar muito cuidadosamente o porquê de eu tê-lo feito. Ele teve grande dificuldade em relembrar seus sonhos, mas produziu alguns recortes e finalmente trouxe um que ocorreu-lhe como muito peculiar e que tinha, evidentemente, causado uma impressão nele: "Eu estava andando num campo aberto e pisei em uma serpente que me mordeu no calcanhar, e me senti envenenado. Acordei assustado". Eu perguntei a ele se pensava algo em particular a respeito da cobra, e ele disse: "Uma perigosa - aquela cobra poderia matar um homem - muito doloroso ser picado por uma cobra". Ele nunca foi efetivamente picado por uma cobra, mas picadas de cobra podem causar dor como a dele. Lembrem-se do dito bíblico do Gênesis: "A serpente ofenderá teu calcanhar enquanto estiveres pisando sobre sua cabeça"[2]. Eu sugeri uma cobra metafórica e ele disse: "Oh, você se refere a uma mulher?" e mostrou emoção. "Há talvez algo desta espécie?" Primeiramente ele negou; então, finalmente admitiu que cerca de três meses antes ele quase estivera noivo, mas quando retornou do serviço outro homem a possuía. "Você ficou triste?" "Oh, se ela não me quer, eu tomo outra". Eu comentei que algumas vezes homens muito fortes ficavam grandemente angustiados. Ele manteve uma atitude de indiferença, tentou despistar, mas em breve estava chorando. O caso estava perfeitamente claro. Ele havia reprimido seu sentimento a respeito dela e sua emoção ao "levar o fora". Ele a amaldiçoou, disse que todas as mulheres eram iguais, e tentou tomar outra, e não podia ver por que não tivera sucesso. Quando percebeu seu sentimento real, ficou profundamente comovido e as dores em seus calcanhares e pés se foram; elas eram meramente dor reprimida. As dores no coração continuaram, mas estas referiam-se a alguma outra coisa; não me deterei sobre isto - eu tomei as dores no calcanhar como um exemplo útil. Este sonho levou diretamente ao cerne da questão.
45 Para um homem, uma cobra é eternamente uma mulher[3]. A cobra do Paraíso é representada, em figuras antigas, com a cabeça de uma mulher. Este homem provavelmente não conhecia o dito bíblico sobre a cobra machucando o calcanhar do homem, mas a imagem estava lá em seu inconsciente. Pense em Rá, no hino egípcio, picado pela cobra formada a partir da terra[4], e colocada em seu caminho por Ísis, sua amada esposa; ela envenenou-o para ser capaz de curá-lo novamente. Esta é a psicologia das mulheres venenosas. No tempo de Luís XIV, houve um caso famoso de uma mulher que envenenou seu fiel criado de modo a ter o prazer de cuidar[5] dele, o que ela fez com extraordinário autosacrifício, durante quatro anos, até a morte dele; todos a qualificavam santa. Então ela envenenou seu velho tio do mesmo modo e cuidou dele, mas desta vez ela foi descoberta, e feita em quatro pedaços por quatro cavalos, uma punição ajustada que ela fartamente merecia.
46 O caso do oficial mostra como um sonho pode fornecer a chave. Algo vaza, mesmo nas pessoas que estão bem defendidas; pode-se eventualmente obter o auxílio necessário, sem o qual o analista não consegue destravar a psicologia de um paciente. É por isto que consultamos os sonhos. Não se pode dizer, de qualquer sonho em particular, que ele tenha um significado; é sempre uma hipótese, nunca se tem certeza; experimenta-se e se descobre se o sonho está corretamente interpretado pelo efeito sobre o paciente. A maioria das pessoas, depois de certa extensão de análise dos sonhos, sabe quando a interpretação "clica"; quando há o sentimento de que ela atinge absolutamente o fato, sabe-se que se está na trilha certa. Explica-se os sonhos sobre uma certa teoria, e se a interpretação estiver absolutamente incorreta, o efeito no paciente mostrará isso, o inconsciente reagirá no próximo sonho, e assim a interpretação pode ser corrigida. Se for dado arsênico a um paciente em vez de cloreto de sódio, o organismo reagirá e eliminará o veneno, e é o mesmo na psicologia; não se pode alimentar uma pessoa com veneno psíquico e esperar que ele seja assimilado.
47 O sonho com o qual estamos lidando agora é bem mais complicado do que aquele que eu acabei de lhes fornecer. Nosso sonhador não é realmente neurótico; é um homem educado e muito inteligente, e seus sonhos refletem isto. Os sonhos dos camponeses, pessoas jovens ou simples, ou primitivos, são via de regra espantosamente simples. No entanto, os sonhos de crianças pequenas são algumas vezes muito claros, e algumas vezes muito difíceis; quanto mais inconscientes são as crianças, tanto mais estão sob a influência do inconsciente coletivo, ou podem absorver os problemas inconscientes de seus pais. Eu tive grande dificuldade com um paciente homem que nunca sonhava, mas um dia ele mencionou os sonhos de seu filho de nove anos de idade. Prontamente eu perguntei a respeito deles. O garoto sonhou os problemas de seu pai, e eu analisei o pai através dos sonhos do menino; o garoto era incomumente intuitivo. Após quatro semanas o pai começou a ter seus próprios sonhos, e os sonhos do menino deixaram de se referir aos problemas do pai. Estas conexões entre pais e filhos são muito espantosas; os sonhos das crianças pertencem ao fenômeno mais interessante da psicologia analítica.
48 A grande sala na qual nosso paciente e seu cunhado iam comer era como um village hall[6] em uma estalagem, como aqueles em que os Vereins [associados de clubes] se encontram na Suíça. Pode-se encontrar com freqüência, especialmente nos villages, um salão para concertos, etc., onde numerosos encontros são mantidos, com ou sem senhoras, com ou sem cerveja, etc. Em duas ocasiões oficiais o paciente lembra de haver participado desse tipo de encontros em uma sala como esta.
49 A longa mesa de jantar no meio da sala foi arrumada como se fosse para um grande número de pessoas. Ele então descobre o arranjo peculiar dos assentos, surgindo nos quatro lados como num anfiteatro, mas com suas costas voltadas para a mesa. Mas antes de entrar neste ponto devemos ter uma certa idéia a respeito da grande sala. Como podemos conectar a grande sala com um teatro?
50 Sugestão: Era seu teatro privado, onde ele veria seu próprio drama interno representado.
51 Dr. Jung: Sim, e então vem o jantar - ele pensa que já comeu, e contudo vai jantar novamente. Da última vez fizemos a suposição de que "comer" significava a assimilação dos complexos. Por aproximadamente vinte e cinco anos eu analisei cerca de dois mil sonhos ou mais a cada ano, e desta experiência eu diria que, mais provavelmente, o ato de comer em conexão com o teatro significa a assimilação das imagens vistas no teatro privado, ou seja, o material fantasioso ou outro material revelado através da instrospecção. Esta é uma atividade de suma importância e é o propósito do tratamento analítico. É também exatamente o que a natureza faz no corpo físico. Se você tem um corpo estranho em si, a natureza manda um exército de células especiais para assimilá-lo; se elas não têm sucesso em absorvê-lo, há então a supuração para fazer a expulsão. As leis são as mesmas na mente inconsciente.
52 Provavelmente na realidade absoluta não há uma tal coisa como corpo e mente, mas corpo e mente ou alma são o mesmo, a mesma vida, sujeitos às mesmas leis, e o que o corpo faz está acontecendo na mente. Os conteúdos de um inconsciente neurótico são corpos estranhos, não assimilados, artificialmente cindidos[7], e devem ser integrados de modo a se tornarem normais. Suponhamos que algo muito desagradável tenha me acontecido e eu não o admito, talvez uma mentira terrível. Eu tenho que admiti-la. A mentira está lá objetivamente, seja no consciente ou no inconsciente. Se eu não admitir isto, se eu não o assimilei, isto se torna um corpo estranho e formará um abcesso no inconsciente, e o mesmo processo de supuração do corpo começa, psicologicamente, assim como tem lugar no corpo físico. Eu terei sonhos, ou, se introspectivo, uma fantasia vendo a mim mesmo como criminoso. O que farei com estes sonhos ou fantasias? Pode-se rejeitá-los, como o fariseu, e dizer "graças aos céus, eu não sou assim". Há um fariseu assim em cada um de nós que não quer ver o que ele é. Mas se eu reprimir minhas fantasias acerca disso, elas formarão um novo foco de infecção, assim como uma substância estranha pode causar um abcesso em meu corpo. Quando é razoável eu tenho que admitir a mentira, engoli-la. Se eu admiti-la, assimilo aquele fato, adiciono-o à minha constituição mental e psicológica; eu normalizo[8] minha constituição inconsciente assimilando fatos. O sonho é uma tentativa de nos fazer assimilar coisas ainda não digeridas. É uma tentativa de cura.
53 Os primitivos dizem que raramente sonham. Quando estive na África, estava muito ansioso em obter alguns sonhos dos homens das tribos, e lhes oferecia altos preços, dois maços de cigarro, sal, etc., por cada sonho que me trouxessem, mas eles eram tão honestos que nenhum trouxe um sonho, embora muitos viessem diariamente me observar. Um dia um velho chefe apareceu, muito orgulhoso e exaltado, acenando seu chapéu a duzentos metros de distância e fazendo sinais, desde longe, de que estava trazendo um sonho, um tesouro: "Eu sonhei que a vaca preta teve um bezerro perto do rio, num lugar que não conheço". Para um primitivo, ter um tal sonho significa que ele foi abençoado pelos céus. Esta era Ota, a grande visão, e o homem precisa ser um grande chefe para ser apreciado pelos céus em tal extensão. O sonhador era um idoso bastante rico, e escravos cuidavam de seu gado, de modo que ele não sabia como andavam as coisas. Eles são um povo amante do gado, vacas são seus animais sagrados[9] e, como os suíços, eles são identificados com seu gado; eles têm em seus olhos a mesma coisa que os Suíços. Ele sabia que tinha uma bela vaca preta mas não sabia que ela estava com um bezerro; no entanto, após o sonho ele desceu até o rio pela manhã e lá estava a vaca com o bezerro dela. Isso era um pouco de telepatia? Ele tinha visto a vaca uma vez quando prenha e se tornara consciente de sua condição? Ele negou ter percebido isto. Nesta tribo não havia castração, nada de bois, os touros estavam sempre com o rebanho; touros muito bonitos, bestas amáveis, mansos, tímidos, quase covardes, não como nossos touros; assim, não havia época para crias, nenhum controle, uma vaca podia engravidar a qualquer tempo, e era bastante razoável que ele não soubesse daquela. Mas o sonho o informou. Por que ele deveria assimilar uma tal coisa? Para os criadores de gado, o nascimento de um bezerro é mais importante que o nascimento de uma criança. Eu morei no campo, e quando um camponês tinha um bezerro todos o congratulavam, embora não quando tinha uma criança. Portanto, este evento muito importante, estando em seu inconsciente, foi revelado a ele através de um sonho, e sua adaptação foi posta à prova, pois ele devia manter-se mais informado a respeito de seu gado. O curandeiro costumava sonhar a respeito de aonde o gado tinha ido, quando o inimigo estava chegando, etc., e, se nós vivêssemos sob condições primitivas, assim seria conosco. Assim sendo, somos informados por nossos sonhos sobre todas as coisas que vão mal em nossa psicologia, em nosso mundo subjetivo, as coisas que devíamos saber sobre nós mesmos.
54 Estou entrando em detalhes para a interpretação do sonho de nosso paciente porque é extremamente importante desenvolvê-la passo a passo, indo de fato a fato: porque ele foi ao teatro, porque ele comeu, assim e assado aconteceu. Portanto, a seqüência irracional deve ser compreendida como uma seqüência causal. Nós vimos a conexão entre a grande sala, o ato de comer e o teatro; temos os assentos do anfiteatro na grande sala, como no teatro; ambos são lugares públicos, a mesa está arrumada; fomos informados de que ele foi ao teatro e a certo lugar para jantar, de modo que podemos estar perfeitamente seguros de que esta parte do sonho pertence ao mesmo tema.
55 Agora chegamos a estes assentos que estão virados de costas para a mesa. Ele disse: "Nós tínhamos que subir uma escada que começava na porta, como se subíssemos a uma espécie de tribunal, e da escada tivemos acesso a fileiras de bancos voltadas para as paredes da sala. Eu vi como as pessoas estavam sentando nesses assentos e percebi que não havia ninguém perto da mesa no meio da sala; o jantar não ia começar ainda, aparentemente". Ele lembrava ter visto uma sala como aquela em uma cidade algeriana, onde estiveram jogando jeu de paume[10], um tipo de pelota basque[11], como o velho tênis inglês. Aquela sala também sugeria um anfiteatro, mas os assentos estavam arranjados ao longo de apenas dois lados da sala, chegando quase ao meio, mas deixando um espaço aberto para o jogo. Neste jogo uma bola é jogada contra uma parede com tremenda força, de modo que o braço fica inchado até o ombro. É algo como o inglês "fives", o precursor do tênis inglês. Ele também fez uma associação com uma clínica, onde havia assentos de anfiteatro no salão de conferências. Ele havia visto uma figura de uma sala destas, e na realidade estivera em uma onde um professor demonstrou em um quadro negro uma operação que era para ser feita em sua esposa.
56 Lembrem-se que uma sala de jantar é um lugar onde as coisas devem ser assimiladas; mas a refeição ainda não começou, e parece ser significado que ela não deve começar ainda. Eu enfatizaria que essa sala de jantar é um local público. Por que o sonho enfatiza a coletividade na qual a assimilação das imagens deve tomar posição? O sonho diz: "Assuma que você está em um lugar público onde estão outras pessoas, como num concerto, teatro ou jogo de bola, e você tem que fazer 'como tantas outras pessoas', numa tarefa coletiva, de modo algum individual; aqui estão os fantasmas de seus sonhos, e é muito difícil ter que engolir que você é um covarde, um cão preguiçoso, etc". Para o paciente, isto parece ser uma tarefa quase impossível. Ele a toma com tanta hesitação, com tão pouco apetite, porque assume que é o único indivíduo desde o início do mundo que tem que fazer isto. É verdade que a análise é uma coisa individual; a parte coletiva é confissão; assim como na Igreja Católica Romana, a confissão é coletiva, e a confissão analítica é algo particularmente desagradável. Católicos me contaram em análise que não contam tudo ao padre. Eu uma vez disse a um tal paciente: "Vá e diga isso ao padre!" "Será que ele ficará chateado?" "Eu espero que ele fique; vá e faça isso". Estes pacientes se tornam católicos muito melhores depois da análise; eu freqüentemente tenho ensinado a pacientes católicos como confessar. Uma vez um sacerdote, alta autoridade na Igreja Católica, perguntou a um de meus pacientes: "Mas onde você aprendeu a confessar assim?" - e ficou um pouco chocado ao ser informado.
57 Então o sonho diz ao homem: "Esta coisa que você está fazendo é uma tarefa coletiva; você pensa que a está fazendo privativamente no consultório, mas muitas outras pessoas estão fazendo a mesma coisa". A análise é análoga à confissão, e a confissão tem sido sempre coletiva e deve ser coletiva; não é feita para alguém em si, sozinho, mas para o bem da coletividade, por um propósito social. A consciência social de alguém está com problemas e força-o a confessar; através de pecado e segredo alguém é excluído, e quando confessa é incluído novamente. Esta sociedade humana será novamente construída, depois do encerramento da era protestante, sobre a idéia da universalmente reconhecida verdade. A idéia da confissão sendo um dever coletivo é uma tentativa do inconsciente para criar a base de uma nova coletividade. Ela não existe agora.
58 Esta, vocês podem dizer, é uma conclusão muito difícil de alcançar, mas para este homem ela vai direto ao ponto. Ele é muito consciencioso e percebe dolorosamente o quanto as pessoas hoje estão separadas umas das outras; ele está separado de sua esposa, ele não pode falar com ela, e ocorre o mesmo em relação a seus amigos, porque ele não pode discutir seus interesses reais. Isto é perfeitamente tolo, uma aglomeração irracional de bobagens! Em circunstâncias primitivas pode-se discutir qualquer coisa, qualquer coisa pode ser dita a qualquer um. Quando um homem diz que sua esposa dormiu com outro homem, isto é nada - toda esposa tem feito isso. Ou se uma mulher diz que seu homem fugiu com uma garota de outra vila, isso é nada - todos sabem que todo homem tem feito isso. Estas pessoas não excluem umas às outras pelo segredo, elas conhecem-se umas às outras e assim conhecem a si mesmas, estão vivendo em uma corrente coletiva. O que mais ocorre na vida com uma tribo primitiva é esse sentimento de estar na corrente da vida coletiva; se um homem é sagaz, ele se dissocia até de si mesmo, de modo a não estar separado da tribo[12]; a tribo inteira é realmente uma unidade. Sente-se que nossas cidades são um mero conglomerado de grupos, cada homem tem seu próprio círculo, e não se aventura a revelar-se mesmo a este, ele procura esconder até de si mesmo. E é tudo uma questão de ilusão. Os assim chamados amigos íntimos não conhecem as coisas mais importantes uns a respeito dos outros. Um paciente homossexual disse-me quantos amigos ele tinha. "Você é muito afortunado em ter tantos amigos íntimos!" Ele se corrigiu: "Tenho cerca de cinco amigos íntimos". "Eu suponho que você é homossexual com seus amigos íntimos". Ele ficou chocado com a idéia, ele esconde isso deles. Este esconder dos amigos destrói a sociedade; o segredo é anti-social, destrutivo, um câncer em nossa sociedade. O paciente sofre particularmente do fato que ele não pode contar a verdade, e o sonho diz que esta é uma tarefa coletiva.
59 Por que agora este jogo de bola? Uma mesa seria o lugar onde as refeições acontecem, e os assentos serviriam às pessoas que estão participando daquela refeição coletiva - realmente uma mesa de comunhão psicológica. A raiz psicológica da comunhão, e a preliminar necessária, é sempre a confissão; nós precisamos confessar antes de sermos dignos de receber comunhão. O comando apostólico: "confessem suas faltas, uns aos outros"[13] foi dado nos primórdios da Igreja de modo a estabelecer irmandade. Então por que estes assentos estão voltados de costas para a mesa? Isto obviamente significa algo muito anormal, muito fortemente colocado; qualquer fato absurdo que é muito enfatizado em um sonho refere-se a algo quase patológico. Para interpretar isto, temos que nos colocar na posição dada pelo sonho. Suponham que vocês entraram naquela sala onde a comunhão deveria tomar lugar e encontraram os assentos de costas para aquela coisa central na sala; o que isto significaria? Que vocês estão recusando entrar na comunhão, é claro. Se cada um tornar suas costas aos seus semelhantes, o jogo não pode ser jogado, nenhuma comunhão é possível, não há interesse concêntrico na coisa que está acontecendo, há uma espécie de excomunhão; cada um olha para a parede, distante das outras pessoas, e assim todos são excomungados, todos estão isolados. Este é um sonho muito pessoal, no qual entram considerações sociais; nada há de mitológico nisto, não é um sonho a partir do inconsciente coletivo. O sonho diz: "O que você está fazendo em seu sigilo é aquilo que todos os outros estão fazendo, todos estão voltando suas costas para seus semelhantes".
60 O centro de um grupo social é sempre um símbolo religioso. Com os primitivos, é o totem; a seguir vem um símbolo sacrificial, como a matança mitraica do touro; em formas mais elevadas de religião está o sacramento. O centro da atividade social sob condições muito primitivas é o cerimonial dançante ou mágico em um círculo no meio das cabanas. Provavelmente estes antigos círculos de pedra ainda encontrados na Cornualha foram uns tais lugares comunitários. E estava entendido que quando as pessoas se reuniam as almas ancestrais estavam lá também, observando-as; não apenas seu consciente estava em comunhão, mas seus ancestrais, o inconsciente coletivo. O cerimonial era um jogo simbólico. As touradas no culto de Mitra não eram como agora são na Espanha; os outros tinham um cinto ao redor do peito, e o toureiro tinha que pular nas costas do touro, apunhalando-o de cima no ombro - não com uma longa espada. Supunha-se ser Mitra um tal toureiro, como um Jesus do ringue de boxe ou de uma partida de futebol. Estes jogos eram comunhões, as pessoas voltavam suas faces umas para as outras. Touradas ainda são o símbolo, na Espanha, de comportar-se decentemente por meio da pura violência contra alguém; o temperamento espanhol não permitiria o comportamento decente se eles não tivessem touradas; eles precisam ter a atitude do toureiro: as paixões precisam ser controladas vivendo-as como o toureiro controla o touro.
61 O mitraísmo era o culto das legiões romanas por causa de sua disciplina. Em Roma, eles se encontravam em cavernas; havia um lugar para encontros e jantares, uma espécie de triclinium, com duas fileiras paralelas de bancos, e no final da sala um quadro simbólico de Mitra matando o touro; o quadro foi feito para girar e mostrar, do outro lado, a nova vida brotando do touro morto, gado dos genitais, vinho do sangue, etc., toda a fertilidade da terra[14]. As pessoas reclinavam nos sofás onde o quadro podia ser visto, e o espaço central era aberto. Era um tipo de teatro e sala de jantar onde elas comungavam com o deus por meio da refeição sagrada: "Assim como o deus está matando o touro, eu estou matando minhas próprias paixões". A água era bebida e pequenos pedaços de pão, com uma cruz marcada neles, eram comidos. Os sinos usados na missa católica romana vieram do culto a Mitra; também a data, vinte e cinco de dezembro, foi assumida pelo cristianismo. O matador de touros é um herói adequado para o soldado; os jesuítas são soldados da Igreja neste sentido, e o Exército da Salvação usa esta forma; pois um soldado, para ter disciplina, precisa matar suas próprias paixões egoístas. Muitas outras coisas do culto mitráico entraram na Igreja Católica. Os banquetes de amor cristãos originais foram, algumas vezes, de uma natureza um tanto duvidosa, freqüentemente terminando em folia. São Paulo não estava muito satisfeito a respeito e tomou conta de uma boa parte do culto de Mitra com propósitos de disciplina, porque nada mais estava disponível. Assim, a primeira forma ritual foi o sacrifício do "cordeiro", - não mais a tourada - a festa sagrada que tornou-se a missa católica.
62 A idéia de um jogo ritual sobreviveu até cerca do século XIII. Eles realmente costumavam jogar bola nas igrejas, o jeu de paume, e isto deu ascensão ao rumor de que os cristãos mataram uma criança ao atirá-la de um para outro como uma bola até que ela morreu. Os gnósticos acusaram os cristãos disto, e os cristãos por sua vez acusaram os judeus. Havia um rumor na Boêmia há apenas trinta anos, de que os judeus haviam matado uma criança, um assassinato ritual. O jeu de paume tinha um significado ritual, tal qual o carnaval. Nos monastérios, durante o carnaval de primavera, eles costumavam reverter as posições do abade e dos irmãos mais jovens ordenados; o irmão mais jovem ordenado se tornava o abade, e vice-versa. Havia também uma festa na qual eles trocavam lugares, o abade e os monges mais velhos servindo os irmãos mais jovens, e uma falsa missa era celebrada, o mais jovem irmão ordenado oficiando, na qual as canções e brincadeiras eram obscenas, e todos bebiam o vinho, não apenas o celebrante; então, ébrias orgias tomavam lugar, e todos corriam para fora da igreja, indo à rua, e chateavam todo o local. Estas festas e o jeu de paume foram finalizadas pelo papa no século XIII porque chegavam a tais extremos[15]. As publicações históricas são extremamente importantes, mas nas publicações eclesiásticas muito é escondido; tem havido muita trapaça em assuntos religiosos, muitas mentiras e muitas omissões. O velho culto fálico, por exemplo, tomado a partir do paganismo nos primórdios da Igreja Cristã, nunca é mencionado; um remanescente dele aparece em uma das formas da cruz, mas as pessoas desviam seus olhos disso[16]. Procurar-se-ia em vão um fato como este nas publicações eclesiásticas.
63 O jogo central simbólico é, então, historicamente verdadeiro. Este sonho dificilmente toca o inconsciente coletivo, exceto que aqui talvez esteja uma leve alusão àquilo que uma vez foi um fato histórico. Mead tinha um texto sobre jogos eclesiásticos em um volume prematuro do The Quest. Ele também publicou um texto chamado "The Sacred Dance of Jesus"[17], uma idéia perfeitamente impossível do ponto de vista cristão, que no entanto pertence aos primeiros séculos; e um pequeno livro chamado The Hymn of Jesus, uma peça de dança e paixão de um documento gnóstico do segundo século.
64 Voltar as costas para a mesa de jantar significa a atitude anti-social de nosso tempo e nossa sociedade, como a cisão de nosso mundo protestante. A igreja que uma vez foi universal agora está dividida em mais de quatrocentas seitas, dissociações ad infinitum. E isso alcançou a sociedade tão completamente que agora todos pertencemos às "pessoas que voltam suas costas umas às outras". Assim, o simbolismo no sonho faz voltar ao problema pelo qual o paciente é perturbado. Para a sociedade como uma coisa abstrata eu não ligo a mínima, mas estou conectado com a sociedade através dos representantes da sociedade, aqueles mais próximos de mim, começando por minha própria esposa, filhos, parentes e amigos, as pontes que me conectam à sociedade. Eu estou desconectado da sociedade quando estou desconectado daqueles que amo. Isto não pode ser indiferente para mim. Tal é o caso com este homem: ele está parcialmente separado de sua esposa, eles não têm comunhão, nenhum jeu de paume ocorre entre eles.
65 Agora o sonho conduz de volta àquele problema muito pessoal. "Nós nos sentamos e eu pergunto a meu cunhado por que sua esposa não veio. Enquanto eu pergunto, lembro-me ao mesmo tempo da razão da ausência dela; eu não esperei por uma resposta porque eu queria mostrar ao meu cunhado que eu não havia esquecido que a criança estava doente". Quanto à doença, ele diz: "Minha esposa nunca é social, nunca sai por prazer se uma das crianças não está perfeitamente bem, ou se ela pensa que as crianças estariam insuficientemente controladas enquanto ela está distante". Como eles haviam vivido tanto em países tropicais onde muito cuidado é requerido para com jovens crianças, criá-las havia sido mais difícil do que se eles tivessem vivido na Suíça. Na África eu mesmo vi a dificuldade em proteger as crianças do perigoso calor do Sol. A criança doente está agora bem melhor, apenas um pouco de febre. Em suas associações com este fato ele refere ao garoto de seu cunhado: "Antes do garoto morrer, eu repetidamente havia perguntado a meu cunhado como estava a criança". Toda esta discussão sobre a esposa de seu cunhado logicamente refere a seu próprio problema pessoal, ao fato de que sua esposa não vem com ele, pois eles não têm comunhão. Ele disse: "Quando uma criança está doente, minha esposa fica sempre terrivelmente perturbada, fora de proporção". A doença da criança é a mais óbvia razão pela qual ele e sua esposa voltam suas costas um ao outro; mas a doença de uma criança real não criaria um obstáculo entre um homem e sua esposa. Já sabemos que aquela ausência de comunhão é um problema social geral que se torna evidente em quase todo casamento. Assim como de fato uma esposa é chamada alhures pela doença de uma criança, assim, tão psicologicamente, ela não se junta a ele por causa da doença da criança no sonho. Agora, desde que a doença da criança acontece durante todo o sonho, precisamos assumir que isto significa mais que uma mera oportunidade para a esposa não estar no jogo. E é importante que a criança doente é uma menina.
66 Sugestão: Vimos anteriormente que a menina-criança era algum aspecto dele mesmo.
67 Dr. Jung: A criança real que morreu era um garoto e não tem efetiva importância aqui. Portanto, se ele sonhasse com um menino, isto expressaria algo nele mesmo. Eu tenho observado em sonhos e em experiências clínicas uma certa tendência no homem para personificar suas idades. Este foi o caso de um médico do campo, no início do século XIX, um homem vivendo uma vida muito árdua, que estava chegando em casa tarde da noite vindo de um caso difícil, caminhando muito cansado, quando tornou-se consciente de uma figura de sombra paralela a ele no meio da estrada. Ele reconheceu a figura como ele mesmo, cerca de dez anos mais novo. Então a visão desapareceu, mas apareceu novamente como ele mesmo, cerca de vinte anos mais novo, e assim por diante até chegar a um menino de oito ou dez anos. Era uma personificação dele mesmo: "O menino ou homem que eu era então, vejo-o ainda como ele era". Assim a alusão ao menino morto é uma alusão à própria juventude morta do paciente. Ele chegou à segunda parte da vida, onde a psicologia de alguém muda: a juventude está morta, a segunda parte está começando. Mas esta é apenas uma alusão; nosso interesse agora está na doença da menina-criança.
[1] Para consideração mais detalhada deste caso e suas conexões com a lenda Egípcia mencionada no parágrafo seguinte, vide "The Structure of the Psyche" (1927), CW 8, parágrafos 303 e seguintes, e "The Tavistock Lectures" (1930), parágrafo 230.
[2] (N. do T.): A citação original em inglês, remontando a Gênesis 3:15, é aquela que se traduz aqui, e é a seguinte: "The serpent shall bruise thy heel while thou art treading upon its head". A Edição Barsa da Bíblia Sagrada de 1967, já relacionada em nota anterior, traz o seguinte texto em Gênesis 3:15: "Eu porei inimizades entre ti, e a mulher; entre a tua posteridade e a dela. Ela te pisará a cabeça e tu procurarás mordê-la no calcanhar". No texto em português desta versão da Bíblia, Deus fala dirigindo-se à serpente e não à mulher, como acontece na citação de Jung de acordo com o original em inglês deste seminário.
[3] (N. do T.): Barbara Black Koltuv, em seu O Livro de Lilith (Ed. Cultrix, 1989), discorre sobre a primeira mulher de Adão, que mais tarde tornou-se na serpente que tentou Adão e Eva. Ela cita C. G. Jung a respeito desse tema, remontando ao Visions Seminar, ao CW 13 (Alchemical Studies, par. 399), ao Letters (Vol. I, 1973, pág. 462), e ao Vol. XII das Obras Completas de Jung (Psicologia e Alquimia, fig. 257).
[4] (N. do T.): No texto original em inglês: "bitten by the snake formed out of the earth", (o grifo em itálico é nosso), a expressão em itálico pode levar à tradução literal "formada fora da terra"; contudo, "out of" também tem um sentido de ponto de partida, origem ou causa. Daí a tradução fornecida nesta versão em português.
[5] (N. do T.): O verbo inglês to nurse admite as traduções de cuidar de um doente, amamentar, acalentar. A forma na qual o texto se apresenta é nursing, que também tem o sentido de amamentação.
[6] (N. do T.): Espécie de grande salão, remontando a um salão de uma agremiação.
[7] (N. do T.): O termo aqui traduzido por cindidos (da idéia de cisão) é split-off, que dá uma idéia de rachar separando. É uma espécie de divisão que pode ser comparada ao cisalhamento, que na Física pode ser produzido por instrumentos de corte, como uma guilhotina.
[8] (N. do T.): Em química, o termo normalização tem um significado interessante: normalizar uma solução implica em fazer com que determinada substância se dissolva em um dado solvente até uma quantidade específica que é ideal em determinadas circunstâncias. A solução normalizada é dita, então, solução a X normal. Em outra situação, o ideal pode ser uma solução a Y normal. Em virtude da aproximação de Jung à alquimia, essa analogia pode ser de algum valor.
[9] (N. do T.): A vaca como animal sagrado é um ingrediente presente em muitas culturas. O sagrado Ápis, do Egito Antigo, é citado por Jung em seu Símbolos da Transformação (par. 579, nota 156), Vol. V das Obras Completas de C. G. Jung, a partir de Heródoto, como sendo "um bezerro de uma vaca que não pode mais conceber um fruto de seu ventre". Junito de Souza Brandão, no Vol. I de sua Mitologia Grega (Vozes, 6a. Edição, 1990) menciona o Minotauro e o Rudra do Rig Veda como "portadores de um sêmen abundante que fertiliza abundantemente a terra" (pág. 57).
[10] (N. do T.): Jeu de paume (francês) = Jogo de Péla.
[11] (N. do T.): Pelota basque (francês) = Bola de meia (ou novelo) basca.
[12] (N. do T.): Em virtude da estrutura da língua inglesa (na qual o verbo to be pode significar tanto ser como estar, diferenciando-se o significado, quando muito, apenas pelo contexto), talvez seja preciso notar que este trecho pode ser lido assim: "(...) ser na corrente da vida coletiva; (...) de modo a não ser separado da tribo (...)".
[13] James 5:16. (N. do T.): "Confess your faults, one to another". Este texto é um trecho literalmente igual ao texto contido na Holy Bible dos Gideons, versão autorizada pelo Rei James, na General Epistle of James, 5:16. O apóstolo James é mencionado pela Bíblia da Barsa como sendo Tiago, filho de Alfeu, dito o menor. A citação correspondente está na Epístola Católica de S. Tiago Apóstolo (5:16), em cujo versículo completo consta o seguinte: "Confessai pois os vossos pecados uns aos outros, e orai uns pelos outros, para serdes salvos: porque a oração do justo, sendo fervorosa, pode muito".
[14] Conferir os Símbolos da Transformação, Vol. V das Obras Completas de Jung, Vozes, 1986, parágrafo 354 (como na edição de 1912).
[15] Jung descreveu algumas destas folias em "The Psychology of the Trickster Figure" (1954), CW 9 i, parágrafos 458 e seguintes. (N. do T.): Na data em que esta tradução ocorre, a Vozes ainda não lançou o Vol IX/1 das Obras de Jung, Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo.
[16] Para um exemplo, vide adiante, 6 de novembro de 1929, fig. 12.
[17] G. R. S. Mead, "Ceremonial Game-playing and Dancing in Mediaeval Churches", The Quest (Londres), IV (1912-13), págs. 91-123; "The Sacred Dance of Jesus", The Quest (Londres), II (1910-11), págs. 45-67; The Hymn of Jesus (Echoes from Gnosis, Londres e Benares, IV; 1907). Conferir também "Round Dance" em "Acts of John" (século II), em The Apocryphal New Testment (1924), traduzido por M. R. James para o inglês, págs. 253 e seguintes; e Max Pulver, "Jesus' Round Dance and Crucifixion according to the Acts of John" (1942), The Mysteries (textos da Eranos Yearbooks, 2; 1955), págs. 179-180.

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